De 15 de outubro a 20 de dezembro deste ano, serão coletados alimentos na sede da Ação da Cidadania no Rio de Janeiro e nos Comitês da Ação da Cidadania pelo Brasil: Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Roraima, São Paulo, Sergipe, além do Distrito Federal. Os endereços podem ser acessados no site do Natal sem Fome. A meta é recolher 500 mil quilos de alimentos.

O jornal Extra Classe, 17-10-2017, ouviu o atual presidente do Conselho da Ação da Cidadania, Daniel de Souza, filho de Betinho, sobre as preocupações da entidade, as tentativas da Prefeitura do Rio e do Iphan, sob o comando do ex-ministro da CulturaRoberto Freire, de querer despejar a ONG para construir um museu e a nova polêmica do prefeito de São Paulo, João Dória, desta vez em nome de nutrir as pessoas carentes.

Depois de 10 anos a Ação da Cidadania volta a fazer novamente a campanha Natal sem Fome. O primeiro passo, aliás, é impactar as pessoas com um post no Facebook com a imagem do Betinho e afirmação de que a fome voltou ao país. Porque esse retrocesso?

Esse retrocesso na verdade se deve a uma crise que vai entrar no seu segundo, terceiro ano. A gente está vendo nas ruas; a gente está vendo principalmente através dos comitês da Ação da Cidadania, que operam em 18 estados, com aquelas pessoas na ponta, que são a nossa principal referência, que apontam a possibilidade da gente voltar para o Mapa da Fome da ONU apenas três anos após ter saído. A gente está usando um dado do Pnad de 2014 (Pesquisa Nacional por Amostra de domicílio do IBGE) que dizia que havia 7,2 milhões de pessoas ainda abaixo da linha da pobreza e, desde os últimos três anos, a gente não pode dizer que a situação do país melhorou. Acreditamos que este número agora é maior, mas só vamos ter esse dado real na nova pesquisa Pnad em 2018.

Teve ainda um fato inusitado, não é?

Sim! Em agosto deste ano, aqui no Rio de Janeiro, a Ação da Cidadania teve que fazer uma campanha pontual para arrecadar comida para os servidores públicos do Estado, que estavam sem receber. Tudo isso deixa claro que se a gente não tomar cuidado, vamos voltar para o Mapa da Fome. O que a gente está querendo, na realidade, com a volta do Natal sem Fome é fazer um alerta. Fazer um aviso para a população, para o governo, para todo mundo de que a gente pode ter um retrocesso que seria uma derrota e um fracasso muito grande para o país. A campanha tem fundamentalmente esse objetivo: o de alertar, de prevenir, de avisar de que a gente não pode, depois de apenas três anos, voltar para o Mapa da Fome.

Na sua opinião, o que foi mais determinante nesse retrocesso: a crise econômica ou a crise política?

Eu acho que as duas coisas. A gente viu que a crise política e essa mudança de governo criou uma série de situações e retrocessos. Hoje mesmo – está em todos os jornais – uma Portaria do Ministério do Trabalho, que foi assinada agora e que vai dificultar a fiscalização do trabalho escravo no país. Isso é uma loucura. E isso é uma loucura entre várias outras coisas. Então, eu acho que tem a crise econômica e tem a crise política, mas tem também uma crise muita grande de credibilidade, de representatividade, que, ao nosso ver, leva a essa polarização que a gente está vendo. Nesse sentido (contra essa polarização), decidimos pegar um tema que ninguém poderia ser a favor. Ninguém pode ser a favor da fome! Você pode ser de direita, de esquerda, evangélico, ateu, Flamengoou Vasco, mas você não pode ser a favor da fome. Estamos pegando esse tema que é absolutamente fundamental e estamos levantando de novo essa bandeira para buscar evitar que, depois de três anos, a gente volte ao Mapa da Fome da ONU.

Por falar em ONU, pela primeira vez dois importantes organismos das Nações Unidas integram a ação (Unesco e FAO). Isto, com certeza, atesta a seriedade e o comprometimento da Ação da Cidadania. Mesmo assim, a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Iphan fizeram gestão para desalojá-los do armazém onde se iniciou todo esse trabalho importante para o Brasil, sobre o pretexto, não menos importante de se instituir o museu da Diáspora Africana. Isto, cá entre nós, não é um contrassenso?

Na verdade, o que a gente está percebendo é que existe um projeto pessoal da Secretaria Municipal de Cultura (do Rio de Janeiro) de fazer um museu e é importante dizer que não é de hoje que a Ação da Cidadania tem um projeto de fazer um Memorial da Diáspora Africana. Aquele armazém onde a gente está foi projetado pelo André Rebouças, o primeiro engenheiro negro do Brasil. Quando a gente entrou naquele espaço, ele estava totalmente destruído e a gente reformou ele todo, procurado receber o termo de cessão definitiva para fazermos nossos projetos.

Como está a situação?

O que está acontecendo nesse momento é que tivemos uma intervenção do Ministério Nacional da Cultura (Minc), na gestão de Roberto Freire, e da própria Justiça no sentido de tirar a gente de lá. Agora (com a saída de Freire) estamos conseguindo uma mediação com a Secretaria Municipal da Cultura através do novo ministro, que é o Sergio Sá Leitão. A saída que vamos tentar é a de compartilhar o espaço. Ou seja, buscar uma forma de que a Ação da Cidadania e o museu consigam conviver. A gente não sabe se vai conseguir, mas pelo menos isto é melhor do que estava se armando, que era expulsar a gente de lá depois de 17 anos e toda a obra e investimento feito. Principalmente depois que o Cais do Valongo, que fica em frente ao armazém, se tornou patrimônio cultural da humanidade.

Quer dizer que durante 17 anos ninguém, além de vocês, valorizavam o armazém e, agora, todo mundo o quer?

Então… A prefeitura não tem dinheiro para nada. Vai ficar estranho se tiver dinheiro para fazer um museu enquanto os teatros estão fechando, enquanto o comércio e os próprios trabalhadores do munícipio não são pagos. Da nossa parte, a gente pretende fazer a maior campanha Natal contra a Fome de todos tempos e buscar conviver com o museu se ele vier a se viabilizar.

Bom, voltando a questão alimentar. Em São Paulo, a base de apoio do governo João Dória apresentou e aprovou a lei que estabelece diretrizes para a Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos. De forma recorde, o prefeito apresentou uma solução que chamou de “abençoada”, através da empresa Plataforma Sinergia. Basicamente a ideia seria se utilizar de restos de comida a vencer, que deveriam ir para descarte para fazer um produto reprocessado chamado Farinata (matéria abaixo). O que você me diz disso?

Olha eu te confesso que eu fiquei um pouco chocado com essa história do Dória. Apesar de nas últimas duas ou três semanas estar focado no lançamento da campanha Natal Sem Fome, me parece mais uma dessas atitudes onde você pensa “se é para pobre, pode ser de má qualidade”. A velha prática de dizer “olha, o pobre está com fome, etc, vamos dar o mínimo”. Ou seja, “vamos dar o que dá pra dar, não o que eles merecem ter”.

Bom, isso é mais uma coisa que a gente tem visto do conjunto do que está acontecendo em SP. Eu acho que, na verdade, é até o que se espera do próprio Dória, não seria outra coisa. Eu realmente lamento. Acho que é uma vergonha e, sinceramente, acho que a gente tinha que colocar isso com mais visibilidade. Já que teve um secretário do Dória que provou e fez uma cara estranha, talvez até colocar artistas, convocar formadores de opinião e pedir para eles provarem. De repente, a gente assim pode mostrar de fato o que é isso.

A impressão que deu é que, na realidade, a proposta do prefeito, muito mais do que combater a fome ajuda mais a reduzir o custo do descarte das empresas. Algo parecido com o que foi feito na doação de remédios perto da data de vencimento pelas indústrias farmacêuticas ao município, que assumiu o custo de um eventual descarte após ter recebido os medicamentos que não poderiam ser vendidos. Na Inglaterra há um projeto muito similar, que se chama Pig Ideia, que com objetivos parecidos de contribuir com a redução do custo do descarte de restos de alimentos faz um produto como à Farinata, mas para a alimentação de suínos.

Caraca! Que loucura. Que loucura. (Pausa). Eu não sei nem o que te dizer. O que a gente vê e é uma das razões porque a gente voltou a fazer o Natal sem Fome é ver que aquelas pessoas que estão naquela linha de ter ou não ter o que comer; naquela situação onde um empurrão os faz cair na faixa da extrema pobreza são essas pessoas que nesse momento de crise e nessas iniciativas “brilhantes”, como essa da Prefeitura de São Paulo, são simplesmente as mais prejudicadas. Se você pegar esse público aí que está abaixo da linha da pobreza, que não tem o que comer, é porque todos os outros direitos lhe foram negados. Não tem direito à cultura, ao lazer, à educação, à saúde, ao básico do básico. E aí, ainda por cima, quando vem alguma coisa que o possa alimentar, em vez de vir o arroz, o feijão, etc, vem a ração. Aí realmente é o fim da linha!

 

Fonte: IHU

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