A operação deflagrada pela Prefeitura e Governo do Estado de São Paulo para “acabar” com a “cracolândia” mostrou o quanto essa ideia de guerra às drogas, de combate a um inimigo interno que precisa ser fortemente reprimido está completamente equivocada. O que está por trás dessa operação é um política de limpeza social, de faxina étnica, ou seja, é necessário desinterditar, retomar o território e higienizar para poder abrir espaço para a especulação imobiliária, para o desenvolvimento do capital.

“O que está por trás dessa operação é um política de limpeza social, de faxina étnica […]”

Nessa narrativa cria-se uma falsa ideia de combate ao tráfico de drogas. Falsa pois os grande fornecedores não estão ali, nem mesmo os grandes consumidores estão ali. O mercado das drogas ilícitas movimenta bilhões e sua lucratividade é advento de um grande número de consumidores que existe em todas as classes sociais, sobretudo nos setores médios, portanto acabar com a “cracolândia” não faz cócegas para essa grande economia.

Se existe consumo de drogas ilícitas em todas as classes sociais e isso representa um mercado gigantesco, por que é tão simbólico “acabar” com a “cracolândia”? Primeiro, é porque a imagem produzida de pessoas na rua consumindo drogas, morando na rua e sem grandes perspectivas escancara as mazelas de uma sociedade profundamente desigual, que em detrimento do lucro de poucos, produz a miséria de muitos. O consumo abusivo de crack nas ruas é apenas a ponta do iceberg de um problema social estrutural.

“A limpeza está acima das pessoas, tanto que o local foi “limpo”, desocupado, mas as pessoas continuam perambulando pelas ruas”

A ação pura e simplesmente repressora desumaniza. A limpeza está acima das pessoas, tanto que o local foi “limpo”, desocupado, mas as pessoas continuam perambulando pelas ruas. Não existe solução fácil para situações complexas. Por isso é tão desastrosa a ação dos governos, o que reforça uma lógica elitista de cidade que tenta esconder os seus problemas sociais através da repressão, da expulsão para locais mais distantes ou até mesmo pela eliminação física.

Não é possível desassociar a operação da “cracolândia” de outros momentos históricos onde a elite nacional pensou estratégias de “desenvolvimento” que passavam por essa ideia de higienização. Vale lembrar que o projeto abolicionista da elite previa a necessidade de buscar um processo de embranquecimento do país, pois inspirado no conceito de eugenia europeu, os negros e indígenas eram considerados raças inferiores, portanto o seu grande contingente populacional era um empecilho para o desenvolvimento do país. Foi nessa perspectiva que se estimulou o processo de fluxo imigratório da Europa para ocupar posto de trabalho no país. A segunda etapa desse projeto foi o estímulo a mestiçagem para que, passadas algumas gerações, não houvessem mais negros retintos no país.

Na cidade de São Paulo esse projeto foi muito explícito e estendeu a formação do mercado de trabalho, como também ao projeto urbanístico. A elite cafeeira se dedicou a construir um projeto para transformar​ São Paulo numa “capital europeia”, com isso organizou os bairros de Campos Elíseos, Higienópolis e Avenida Paulista para abrigar em grandes casarões os fazendeiros. Também se instituiu um processo sistemático da substituição da mão de obra negra por imigrantes italianos.

A população negra se concentrou em casas coletivas e com baixa infraestrutura na região da Barra Funda, Bexiga e Várzea do Carmo, espaços de resistência quilombola urbana, base para formação de núcleos culturais que ficaram​ bastante conhecidos posteriormente como a formação das irmandades, Cordões Carnavalescos, depois escolas de samba. No entanto, com a expansão do projeto higienista e desenvolvimentista esses territórios também passam a sofrer intervenções para expulsar os indesejáveis.

Isso fica muito nítido no relato, em 1919, do Washington Luiz, ex- Secretário da Justiça e da Segurança Pública, então Prefeito de São Paulo e depois presidente da república, sobre a Várzea do Carmo, hoje Parque Dom Pedro:

“É aí que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas e banquetes do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade, em uma promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. É aí que se cometem atentados que a decência manda calar; é para aí que se atraem jovens estouvados e velhos concupiscentes para matar e roubar, como nos dão notícia os canais judiciários, com grave dano à moral e para a segurança individual, não obstante a solicitude e a vigilância de nossa polícia. Era aí que, quando a polícia fazia o expurgo da cidade, encontrava a mais farta colheita”.

O relato de Washington Luiz nos permite fazer um paralelo direto entre o projeto de urbanização da Várzea do Carmo em 1919, com o atual Projeto Nova Luz. Em ambos o objetivo é o mesmo, fazer uma limpeza racial/social, para abrir caminho para o “desenvolvimento”. Antes, um dos argumentos era o uso abusivo do álcool, os(as) negros(as) associados a criminalidade, vagabundagem, ou seja, uma vergonha para cidade e um país moderno. Hoje o problema está ligado aos usuários de crack que representam o antagonismo da cidade vendida por João Doria em seu vídeo triunfal apresentado em suas viagens ao exterior: é necessário extirpar essa gente que atrapalha a cidade dos negócios, a cidade moderna.

Tanto Washington Luiz tentou, como João Doria tentará um sucesso nos seus projetos higienistas, porém não se resolve mais de 500 anos de história de exploração e exclusão tentando empurrar tudo para debaixo do tapete.

 

Texto de Joselicio Junior
Fonte: Revista Fórum

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