Em artigo publicado neste jornal no dia 8 de fevereiro de 2013, o médico Carlos Madalosso defendeu três propostas para o Hospital Beneficiente Cesar Santos (HBCS).  O referido Hospital vem sendo objeto de vários debates sobre o seu futuro. No conjunto das opiniões levantadas sobre o tema, o artigo do Madalosso soma-se a várias outras feitas por um conjunto de outros atores locais. Ao nosso ver, algumas questões do artigo merecem ser debatidas pela população pois revestem-se de um posicionamento ideológico preciso que transversaliza a análise e que justifica um  “desconhecimento” dos tema por parte do autor.

Hospital Beneficente César Santos em Passo Fundo.
Hospital Beneficente César Santos, em Passo Fundo.

Iniciemos pelo elogio feito à ditadura militar. É difícil entender que após todo o período democrático, alguns ainda tenham saudade de um período marcado pela tortura, perseguição e falta de transparência, inclusive na área da saúde. O INPS, por exemplo, criado com a unificação dos IAPS, não foi outra coisa do que centralizar os intermináveis recursos dos IAPS para sua utilização no financiamento de megaprojetos no Brasil, entre eles grandes hospitais. Estes foram construídos na época influenciado pelo modelo hospitalocêntrico americano e posteriormente contratado para oferecer serviços ao INAMPS. Um modelo por todos conhecido, a dizer, construir hospitais com dinheiro público, entregá-los à iniciativa privada que  posteriormente fora contratada pelo mesmo estado para oferecer os serviços à população. Um projeto sem nenhuma transparência.

Felizmente em 1988, através de um processo popular de participação social, inclusive com profissionais médicos, a Constituição Federal reconheceu a saúde como direito fundamental do cidadão e de responsabilidade do Estado. Foi assim que surgiu o Sistema Único de Saúde e, mesmo que alguns estranhamente ainda defendam a ideia de que com o SUS a saúde piorou, o sistema de saúde brasileiro reconheceu a todos os cidadãos o direito à saúde. O impacto desta importante política extinguiu, entre outros, a desumana categoria   de “ pessoas indigentes”, que dependiam da caridade para ter acesso aos serviços da saúde.

O caráter universal e gratuito do SUS, inscrito na Constituição Federal, foi o que legalmente impediu a cobrança  por parte dos prestadores de serviços  e profissionais da saúde quando o atendimento é pelo SUS. Não foi, portanto, resultado de uma política fundamentalista do governo Olívio Dutra como o autor do artigo invoca. Aliás, a acertada implementação da fiscalização por parte dos conselhos, sindicatos e outras organização à ilegal e antiética prática de cobrança indevida foi o que contribuiu para que o Sistema de Saúde pudesse avançar, mesmo diante de inúmeros desafios. Sabemos que muitos profissionais de saúde, inclusive aqui em Passo Fundo, ainda usam dessa prática, cobrando uma diferença “por fora” mesmo que internando pelo SUS. Isso parece não figurar como problema ético-jurídico para o autor do artigo. Aliás, quando fala dos formulários do SUS nos consultórios particulares, defende abertamente a ideia de que isso era bom para o SUS.

Para quem reconhece a Constituição Federal como um avanço da cidadania brasileira, é no mínimo estranho saber que o estimável autor do artigo, que por muito tempo foi diretor do curso de medicina na cidade,  diplomando mais de 700 médicos, muitos trabalhando no SUS , ainda não tenha compreendido a dimensão dos direitos humanos que fundamenta o SUS. Este sistema  é uma política pública de caráter universal, portanto gratuito,  o que torna crime o pagamento por diferenças.

Essa compreensão ainda disseminada por profissionais e instituições da saúde pode ajudar a explicar a falta de cumprimento de horários de profissionais médicos nas unidades de saúde pública. Em alguns casos, profissionais contratados para trabalhar 20 horas ou 40 horas  sequer fazem a metade do horário. Se o policial ou o professor deve cumprir o horário, os profissionais médicos também o devem. Se o salário é bom ou não, é um outro debate que legitimamente a sociedade deve fazer.

Sobre a sustentabilidade, a discussão talvez não seja somente o valor pago pelos procedimentos realizados, e sim pelos procedimentos não realizados. O HBCS, infelizmente, não recebe mais recursos do Governo Federal e Estadual porque não funciona como um Hospital, não cumpre com a finalidade que deveria cumprir junto à população passofundense. E o seu papel, não seria o de atender alta complexidade, que exigiria um alto investimento, mas sim baixa e média complexidade.

Fazemos votos que esta compreensão  não seja a linha  que irá nortear o novo governo municipal, mesmo que no debate sobre o Hospital Municipal algumas propostas preocupantes já tenham sido formuladas, inclusive por pessoas nomeadas recentemente para gerenciar o Hospital  como a ideia de tornar o HMCS um “Postão”, amplamente rechaçada pela população. Por fim, sobre as três propostas cabe algumas considerações:

1 Talvez não seja inteligente equipar o Hospital Municipal para atender procedimentos de alta complexidade apenas porque isso garantiria sua sustentabilidade financeira. Os profissionais da saúde sabem que estabelecimentos de saúde, seja de média ou alta complexidade, quando construídos devem ser precedidas de estudos epidemiológicos e de estrutura já instalada, etc. Passo Fundo já tem dois grandes Hospitais que atendem pelo SUS e são adequados para sua realidade, porque concentrar mais um Hospital quando no Brasil inteiro há imensos vazios assistenciais?

2. Seguindo a lógica dos vazios assistenciais, porquê o governo federal, através do Curso de Medicina, deveria investir em mais um Hospital em Passo Fundo, se temos milhões de cidadãos pelo Brasil que vagam por centenas de Klm para encontrarem assistência? O que deve acontecer é a atual gestão assumir seu compromisso de campanha para fortalecer e qualificar o Hospital, e não passar a responsabilidade para outro ente público!

3. O artigo termina propondo entregar o Hospital a outra instituição. A lógica sugerida é muito parecida com o processo de privatizações que o Brasil assistiu com o governo Fernando Henrique.  Ou seja, desqualificar o que é público através do discurso da ineficiência, advogando sua insustentabilidade para passá-lo à iniciativa privada. Estranho que para o Município não é viável o HBCS, mas para outra instituição seria. Atenção! O Hospital Municipal não é uma empresa que tem como finalidade gerar lucro. Sua função é outra, e portanto, demanda investimento de outras fontes externas a ele. Fora disso vamos criar um Hospital com duas portas: uma para quem pode pagar e outra para os “pobres” e “indigentes”, com o discurso que os primeiros sustentam os segundos. Uma retórica discriminatória e que ainda não assimilou a reforma sanitária proposta pelo SUS e contemplada pela CF.

Nara Aparecida Peruzzo

Mestre em educação – UPF, Educadora Popular do CEAP e Conselheira do Conselho Municipal de Saúde

Jorge Alfredo Gimenez

Especialista em Direitos Humanos, Educador Popular do CEAP

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