Tese da UFRGS sobre a população de rua considera parecer dos pesquisados

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Tiago Lemões pesquisou sobre a mobilização política das pessoas em situação de rua em Porto Alegre, no MNPR | Foto: Guilherme Santos/Sul21

No começo de 2014, Tiago Lemões tinha acabado de começar a pesquisa de campo de sua tese de doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e não conseguia dormir. Mas, não eram os prazos, orientador ou a pilha de referências bibliográficas que lhe tiravam o sono. A causa foi um boato que se espalhou em Porto Alegre, poucos tempo antes da cidade receber a Copa do Mundo. Naquele começo de outono, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) recebera um e-mail sobre um corpo que havia sido encontrado no Parque da Redenção. A “denúncia” descrevia um homem negro, em situação de rua, que teria sido espancado por cinco policiais, tendo os olhos perfurados, costelas quebradas e o crânio afundado, antes de ser deixado para morrer. “Era quase a descrição de um laudo, o que a gente achou muito estranho”, lembra Tiago.

A história dizia ainda que o corpo fora encontrado por alguém da vizinhança, que chamou a polícia. O homem, identificado como “Cláudio”, por causa de uma conta de luz encontrada no bolso de sua calça, teria sido levado por uma ambulância para um hospital já sem vida. Porém, não havia nenhum dado, sobre nenhum Cláudio, com aquelas características em lado nenhum. Nada nos hospitais, nada no Instituto Médico Legal (IML), nenhuma certidão que mostrasse que essa pessoa algum dia existiu. Nenhum corpo.

Nesses dias, Tiago mudou. Deixou de lado a pesquisa, passou a ajudar em investigações clandestinas atrás de pistas. Se arriscou algumas vezes entrando na Redenção, à noite, perguntando a quem encontrasse se sabiam algo sobre “Cláudio” ou quem poderia tê-lo matado. “Eu estava transtornado com essa morte. Eu me via desesperado. Essa cena, do suposto assassinato, passava na minha cabeça a todo momento. Eu não fazia mais diário de campo, ligava o tempo todo para o IML para ver se tinha chegado algum sujeito com o nome de Cláudio. E foi aí que eu comecei a entender que não estava mais ali apenas para pesquisar”, lembra ele.

No final, uma investigação concluiu que Cláudio nunca existiu. Para o MNPR, porém, ele acabou virando o que Tiago define como “boato de potência política”. A história fez com que o movimento, que havia retomado as atividades no ano anterior, mobilizasse pessoas, ganhasse visibilidade e entendesse como funcionava a burocracia de uma investigação, na prática. “Queria saber [o que tinha acontecido], porque algo tinha que ser feito. Marcou minha vida totalmente, algo que eu nunca vou esquecer”, diz o pesquisador.

O caso que nunca existiu serviu para transformar Tiago em um militante do MNPR. Serviu também como novo foco para a sua pesquisa que buscava entender como pessoas em situação de rua se organizam em torno da militância do movimento retomado em 2013, após as jornadas de junho. No final de setembro, ele foi aprovado no doutorado em Antropologia pela UFRGS graças à tese: De vidas infames à máquina de guerra: etnografia de uma luta por direitos. Pela primeira vez, uma tese foi avaliada considerando o parecer das pessoas que foram pesquisadas.

 

Questão histórica

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os dois primeiros capítulos da tese abordam a perspectiva histórica da questão, com um traço que ele diz não ter encontrado em todo seu levantamento de bibliografia da Antropologia sobre população de rua: a questão racial.

No século XIX, quando a Inglaterra já havia abolido a escravidão e se percebe que ela está ruindo, o Brasil adota as primeiras políticas de segurança pública. “Em 1830, começa a haver um certo pânico da classe dos senhores da população branca, de que esses escravos poderiam se rebelar. Se cria o Código Penal de 1830, que criminaliza qualquer corpo negro que esteja no espaço público. Esse medo é a origem das políticas de repressão contra pessoas em situação de rua. Isso vai até 1888, no contexto da abolição. Começam a adotar medidas desde a reclusão de pessoas negras no Exército, até fazer um trabalho, ainda na senzala, de educação e pedagogia desses corpos, para respeitarem os senhores brancos”.

Nas décadas de 1920 e 1930, as políticas de repressão continuaram, com a polícia agindo de forma mais articulada com as ciências médicas e antropológicas. Por exemplo, com a doutrina de Cesare Lombroso. “Eles acreditavam em identificar um criminoso através do fenótipo. Havia toda uma discussão científica para identificar criminosos e geralmente caíam em negros, que estavam no espaço público, sem trabalhar. [A pesquisa] atravessa todo o século XX, mostrando a continuidade desse discurso e o quanto ele vai se tornando racista, se escondendo em uma cruzada contra a ‘vadiagem’ e a mendicância, principalmente, a partir da década de 1940”.

Tiago aponta ainda que, assim como em outras sociedades que passaram pelo processo de ser colônia europeia, na relação do Brasil com sua população de rua há um vínculo entre racismo, Estado, modernidade e violência.

 

A militância

Ato em memória de Paulinho, morador em situação de rua e cartunista, assassinado na Praça da Matriz | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) surgiu em 2004, depois de um chacina ocorrida na Praça da Sé, no centro de São Paulo. Em Porto Alegre, ele alterou tempos de atividade mais intensa e outros em que quase foi desligado, até ser retomado de vez, em 2013. Foi nessa época que Tiago conheceu o MNPR-RS e resolveu estudar a militância. Ele foi percebendo como ali dentro o estereótipo histórico, que recai sobre essas pessoas – “incivilizados, drogados, isolados, sem educação” – se desmanchava com a formação de “um corpo político que domina as leis, sabe como se comportar, como dialogar com uma autoridade estatal”.

O movimento, segundo ele, é dividido em dois grupos: apoiadores, pessoas que ajudam, como psicólogos, assistentes sociais, universitários, enfermeiros, e militantes, e as pessoas de fato em situação de rua. A maioria dos integrantes orgânicos do movimento, porém, são pessoas já inseridas em redes sócio-assistenciais – vivendo em abrigos, com aluguel social ou repúblicas independentes. Os demais, membros rotativos, se aproximam e se afastam por uma série de motivos que a própria condição da rua impõe. Mas, ajudam a criar uma dinâmica própria com suas narrativas.

Embora existam várias questões – a maioria delas, complexas – que levem alguém à militância, Tiago destaca que o traço principal é a crítica. “Essas pessoas estão o tempo todo criticando e apontando falhas do próprio Estado, em políticas públicas. Elas têm toda uma narrativa de descobrir que têm direitos”. Em 2013, o grupo do MNPR saía distribuindo panfletos, chamando pessoas em situação de rua para militar. Hoje, depois de ficar conhecido em ações como a retomada do restaurante popular, a manutenção da EPA (Escola Porto Alegre), única escola para a população de rua, ou a denúncia de mortes antes invisíveis, o movimento não precisa mais de divulgação.

A militância traz ainda outro traço que é da própria rua: a ligação entre organização pessoal e coletiva. “A rua tem todo um outro cenário que destrói com essa lógica individualizante que nós, os sedentários, vivemos. Ela desafia as próprias políticas públicas. Quando se está na rua, a dimensão do coletivo é um valor. A dimensão do afeto, do cuidado, são coisas muito fortes. O sujeito que compartilhava tudo o que conseguia com os outros era muito bem visto e querido por todos”.

 

Violência e Estado

Em protesto, militantes do MNPR deitam em frente ao Palácio da Justiça | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para debater a relação entre as duas palavras acima, Tiago usou como caso de análise as políticas adotadas para a população de rua, na época em que a Copa do Mundo de 2014 veio para Porto Alegre. Uma “Patrulha” de Direitos Humanos, formada por Ministério Público, Defensoria Pública, vereadores e movimentos sociais, chegou a ser criada para monitorar e denunciar casos de violência contra a população de rua.

Em meio aos rumores de remoções e pessoas sendo levadas para galpões em Viamão, as autoridades da patrulha passaram a pedir que quem fizesse denúncias, adicionasse nome de policial, número da viatura, local e hora em que o fato teria ocorrido. O que alienou a maioria da população em questão. “No final do processo, Porto Alegre concluiu que aqui não existe higienização social. Uma produção, que também foi midiática, porque a mídia estava sempre reforçando que estava tudo ok. ‘Apenas relatos de movimentos sociais’. Sem nada oficial, então não tem”.

Porém, segundo episódios ouvidos pelo pesquisador, quem fazia as entrevistas na ruas, já alertava que seria melhor deixar determinado local, porque mais tarde a polícia viria para lá. “Os próprios agentes diziam para tomar cuidado. Pediam para sair do Gasômetro e aconselhavam a ir para terrenos atrás de tapumes. Foi um processo de esconder mesmo. Tudo isso sob o guarda-chuva dos direitos humanos e de proteção. Isso me ajudou a relativizar [na tese] o quanto esse discurso é politicamente manipulado para dar visibilidade à autoridades, instituições do Estado e colocar o direito social, apenas, como produtor de relatos, sem validade nenhuma”.

Casos de remoções têm crescido, segundo movimento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O pesquisador, que teve seu trabalho indicado a um prêmio da Anpocs (Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais), lembra que, embora o movimento e a construção da militância tenham ajudado a dar visibilidade para questões antes ignoradas, a violência contra a população de rua vem aumentando. “Do ano passado para cá, quase dobraram os casos de pessoas sendo expulsas, de vizinhança ligando para a polícia, pedindo que as pessoas sejam retiradas daquele espaço público da forma que for. Os casos de agressão, de violência e morte, de pessoas em situação de rua em Porto Alegre, aumentou consideravelmente. Não tenho números, mas isso é uma coisa que a gente sentiu dentro do movimento social”.

O Brasil possui leis que buscam garantir que as pessoas em situação de rua tenham acesso aos mesmos direitos que qualquer outro cidadão. O decreto 7053, que institui uma política nacional para a população de rua, e a portaria 940, que obriga serviços de saúde pública a atenderem sem necessidade de comprovante de residência ou apresentação de identidade, são algumas delas. O problema sempre é a prática.

“Temos todas essas questões que precisam avançar. O reconhecimento dessas pessoas como sujeitos de direitos e o reconhecimento de um processo social que está aí até hoje, produzindo vidas que são descartáveis, zonas de não-humanidade. Isso destrói qualquer dignidade”, diz ele. “Eu defino a militância como um dos principais caminhos que concede visibilidade à população de rua”.

Texto de Fernanda Canofre
Fonte: Sul 21

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