Cidade que transborda contrastes

0

A linha do horizonte cortada por prédios enfileirados não esconde, logo abaixo, a camada menos favorecida da população que vive com menos da metade de um salário mínimo. A reportagem do Diário da Manhã mapeou e foi a campo entender como vivem cerca de oito mil e quinhentos passo-fundenses na periferia de uma das cidades mais prósperas da região Norte, em que o sol nem sempre nasce para todos.

Toda vez que chove, a moradia de número vinte e sete localizada quase no fim da Avenida Rio Grande, no Bairro Valinhos, acaba tomada pela água. Isso porque do outro lado da rua, o boeiro que seria responsável pelo escoamento da chuva está entupido há mais de dez anos. Por sorte, durante esta tarde, o céu claro com algumas nuvens é um indicativo de que o aposentado Luís Rodrigues dos Anjos, 63 anos, e a esposa, Jurema Fochezatto dos Anjos, de 60, não terão problemas para erguer os móveis ou tentar salvar o estoque de papelão juntado ao longo de um dia de trabalho.

Em outubro do ano passado, um grave problema nas articulações de Luís o afastou de seu ganha pão. O ex-catador de papelão, acometido pelos efeitos de uma rotina exaustiva de trabalho, teve de abandonar a atividade que exercia ao lado de sua esposa e encaminhar a aposentadoria por invalidez. A renda, que antes não passava dos R$ 400,00 por mês foi substituída pelo subsídio do governo que atinge cerca de um salário mínimo. Mesmo assim, a dificuldade financeira permanece um dos fatores que a esposa de Luís convive diariamente, sobretudo após o nascimento do filho, que hoje tem 15 anos. Com o esposo encostado há quatro meses, a papeleira de cabelos grisalhos e feições simples precisa se desdobrar – muitas vezes fora de horário comercial – para conseguir aumentar a renda da família e colocar alimento em casa, já que não conseguiu outra forma de trabalho para seguir a vida.

“Tenho que tirar a renda disso. Para o nosso alimento e para o meu filho. Tudo o que comemos vem do papel.”

É com uma bolsa carregada de 30 kg de papéis – o limite suportado por vez – que semanalmente é pesada e resulta na base dos R$ 20 que a papeleira junta dinheiro para família. Mensalmente, segundo ela, a arrecadação chega a um valor entre R$ 150 e 200 para sustentar a casa, junto do esposo e do filho. “Tenho que tirar a renda disso. Para o nosso alimento e para o meu filho. Tudo o que comemos vem do papel”, afirma. Jurema explica que a rotina para coletar papel é na grande Vera Cruz, com saída do bairro Valinhos.

A maior preocupação dela é quanto às refeições da família. O filho, com problemas cardíacos, precisa de cuidado com a alimentação. Café preto, por exemplo, o menino não pode tomar para não prejudicar a saúde. Antes da prevenção, o maior sufoco é quando a renda não é suficiente para comprar alimento. Ao mostrar a prateleira com poucos mantimentos, ela reclama do valor dos alimentos diante da sua disponibilidade financeira. “Não se consegue fazer mais nada hoje. Não é possível comprar alimentos com esses valores caros. O meu dinheiro sempre falta, não dá para comprar tudo que precisamos”, reclama Jurema.

“É o que sobrou, por enquanto.”

Com receio, a papeleira pediu ajuda para a reportagem do Jornal Diário da Manhã, com contribuição de alimentos, como leite, arroz e feijão. Na prateleira, escassa de produtos, a papeleira apontava para os únicos quatro itens presentes na cozinha: café, azeite, meio quilo de massa e farinha de trigo. “É o que sobrou, por enquanto”, disse. Diferente dos potes vazios na prateleira, em frente a casa estavam diversas caixas de papelão, que seriam vendidas em dias posteriores. Todo o papel recolhido por ela é carregado sobre o companheiro de trabalho: um carrinho de ferro e arame, construído por ela mesma.

O contexto no qual vive o casal reflete a realidade de pelo menos outros oito mil e quinhentos passo-fundenses que vivem com até meio salário mínimo, de acordo com o último censo do IBGE. O valor corrigido pela inflação do período, resulta hoje, em R$ 477,00 para passar os trinta dias do mês. A quantidade de pessoas nesta situação corresponde a 4,3% da população do município, conforme comenta o coordenador da agência do IBGE de Passo Fundo, Jorge Bilhar. “Os dados são de 2010 e de lá pra cá, muita coisa mudou no cenário econômico. O país atravessa ainda os efeitos da crise econômica que potencializa as dificuldades para esta parcela da população. Nós temos a convicção de que esses índices se mantiveram, ou até mesmo, aumentaram em decorrência disso”, projeta.

Ajudei a erguer muitos desses prédios que vocês veem por aí.

Luís Rodrigues, personagem principal de uma realidade que respinga em outros milhares de passo-fundenses, chegou na cidade há mais de quarenta anos, atraído pelo setor que aqueceu a economia regional nas décadas passadas: a construção civil. “Vim para cá e logo comecei a trabalhar na construção. Ajudei a erguer muitos desses prédios que vocês veem por aí. Mas aí o negócio começou a parar e o serviço faltar. Como não tenho estudo, acabei indo para o lado de catar papel para sobreviver. Até agora que não posso mais fazer nada por causa dos meus problemas de saúde”, desabafa o aposentado. É justamente esse contexto que Jorge Bilhar, do IBGE, aponta como um dos motivos do surgimento dos aglomerados subnormais, caracterizados por serem conjuntos habitacionais periféricos não reconhecidos como bairros por lei.

“Se nós fizéssemos um levantamento da origem destas pessoas que vivem em condições de baixa renda aqui na cidade, vamos perceber que a maioria veio de fora, de municípios da região. Grande parte atraídos pela construção civil que foi um dos tripés da economia no passado. Com a desaceleração do setor, e também, pela exigência de qualificação, muita gente perdeu postos de trabalho e acabou tendo que se adaptar em outra atividade”, analisa Bilhar.

 

Em duas décadas, pobreza diminuiu em Passo Fundo

Baseado no último censo disponibilizado no município pelo IBGE, em comparação com o censo da década de 1990, o coordenador geral da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), Paulo César Carbonari, relata que os índices de pobreza e extrema pobreza diminuíram no município, na contramão do que aconteceu no mundo. Segundo ele, o percentual de pobreza passou de 20%, em 1991, para 3,63% em 2010. Além disso, a extrema pobreza caiu de 6,37% para 0,83%. “Se vê uma queda vertiginosa nas duas esferas. Essas duas décadas foram determinantes para que a cidade chegasse num grau de redução significativa de pessoas que vivem na pobreza. Passo Fundo vai um pouco na contramão do resto do mundo, porque diminuiu os pobres e aumentou os ricos. No resto do mundo, aumentou os ricos e também aumentou o número de pobres”, afirma.

“A pobreza negra não se alterou nesses 20 anos em comparação a renda dos brancos.”

Dentro da situação de pobreza, Carbonari aponta um dado importante registrado nos últimos 20 anos até 2010: a renda de pessoas negras e pardas é equivalente a metade da renda de pessoas de cor branca no município. “Mesmo que a pobreza tenha reduzido, ela tem cor. A pobreza negra não se alterou nesses 20 anos em comparação a renda dos brancos. Na renda per capita domiciliar, aumentou menos para negros e pardos. Nas duas décadas, a renda dos negros ficou praticamente a mesma dentro da proporção, enquanto a dos pardos aumentou um pouco”, completa o coordenador da CDHPF.

Outra categoria que o coordenador considera uma das mais vulneráveis dentro da pobreza é quanto as mulheres. De acordo com o censo de 2010, o número de mulheres chefe de família cresceu, se comparado com as outras duas décadas anteriores. Carbonari ressalta a grande quantidade de separações que acarretou nesta situação. Segundo ele, o índice subiu de 9,6% para 15,7%. “Houve um aumento das mães chefe de família, sobretudo com escolaridade inferior. Quanto a gente cita isso, analisamos para ver o grau de vulnerabilidade dos mais pobres, como é realizado de praxe nessas estatísticas. Esse é um fato que chama bastante atenção”, completa.

 

Pelo menos 6,4 mil pessoas estão em situação precária

Considerados como uma consequência da má distribuição de renda e do déficit habitacional enfrentado em todo o país, os aglomerados subnormais existem de forma técnica desde o censo de 2010 do IBGE. O órgão intitula assim as grandes localidades que apresentam maior situação de vulnerabilidade, miséria ou pobreza. Em Passo Fundo, o IBGE apresentou cinco locais que possuem características da situação mais pobre da cidade: a Beira Trilho (no bairro Victor Issler), a Vila Cruzeiro (Popular), Entre Rios, bairro Lucas Araújo e no Xangri-lá.

“Esse dado mostra que pelo menos 6,4 mil pessoas vivem em situação muito precária em Passo Fundo.”

De acordo com o coordenador da CDHPF, esses aglomerados juntam mais de 51 habitações, onde 2.428 pessoas se concentram em 700 domicílios. “Em quantidade de pessoas, o maior número se encontra na Vila Cruzeiro, também conhecida como Popular”, declara. Carbonari relata que se considerar o aglomerado com menos de 51 moradias, o número aumenta drasticamente: passa para 6.444 pessoas espalhadas em 1.611 domicílios. “Esse dado mostra que pelo menos 6,4 mil pessoas vivem em situação muito precária em Passo Fundo. Sejam nesses cinco aglomerados, ou em outros menores, com menos de 50 casas, que seriam anormais, porque teriam um conjunto de falta. São aqueles lugares onde falta tudo”, salienta. Ao relembrar a declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre avaliação da pobreza, Carbonari é preciso. “Situações de extrema pobreza são lugares de violação sistemática de direitos humanos. A pobreza não é só a falta de comida, mas a falta geral de quase tudo. Falta de cidadania, condição de exercício dos direitos. Assim por diante”, finaliza.

Oficialmente, existem vinte e dois bairros regularizados por lei na cidade. Em meio a eles, os aglomerados subnormais em que a renda da população não passa de meio salário mínimo se concentram, majoritariamente, nas regiões do Bairro São Luiz Gonzaga, Vila Cruzeiro, Bairro Integração e Zachia. Nesses locais, a soma de habitantes totais ultrapassa 24 mil pessoas.

 

Efeito dominó afeta camadas mais pobres

O cenário nacional como um todo, diante do crescimento do desemprego nos últimos anos e da insegurança, é um elemento que afeta diretamente na economia do país. Esse é, de acordo com o secretário da Semcas, Wilson Lill, o que interfere diretamente na população menos favorecida, diante do efeito dominó da política nacional para a economia e para as classes da sociedade. “O que vemos no Brasil todo, e Passo Fundo não é uma ilha, é que estamos caminhando para a precarização dos empregos e da forma de trabalho. O trabalho informal aumentou, isso não consegue garantir uma renda como deveria ser. As pessoas buscam, elas querem, buscam empreender, mas muitas vezes com alternativas, não no trabalho formal”, pontua. “As pessoas perceberam que não dá para esperar pelo governo dar e oferecer. Isso não funciona. Elas precisam ir atrás. Estão redescobrindo seu jeito empreendedor e sua capacidade, mas muitas vezes esbarram na questão da informalidade”, acrescenta o secretário.

O reflexo da pobreza está nas ruas de Passo Fundo: cada vez mais cresce o número de pessoas que pedem dinheiro ou alimento pelas esquinas da cidade. De acordo com o secretário da Semcas, a prática foi retomada por famílias menos favorecidas como fruto do cenário nacional. “Isso já tinha aparecido na década passada, em 2006 e 2007 para frente. Tivemos uma economia que cresceu e isso foi diminuindo, desaparecendo. Agora de 2012 para cá, com 2014 piorando bastante, 2015 e 2016 estabilizando, isso prejudicou ainda mais. O aumento das pessoas que pedem coisas nas ruas é fruto desse cenário. O jeito menos aconselhável é pedir na rua, mas quando se está numa situação de vulnerabilidade, as pessoas vão atrás de comida e dinheiro por meios que não são recomendados”, ressalta Wilson.

 

Programas beneficiam quem precisa

Em Passo Fundo, são 3.816 famílias beneficiadas com o programa do governo federal Bolsa Família, de acordo com dados atualizados até dezembro de 2017 pela Secretaria de Cidadania e Assistência Social (Semcas). A média do valor recebido pelas famílias passo-fundenses é de R$ 140,43 por mês. A quantia varia de cada família, visto que depende o número de filhos de cada grupo. As famílias ganham, por exemplo R$ 39 até o quinto filho para passar o mês, segundo a Semcas. Todas as famílias são inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) do município, que possui 15 mil famílias incluídas. Em 2018, o governo federal realizou orçamento de R$ 28,7 bilhões destinados para o programa federal em todo o Brasil.

O município conta com dois programas sociais para as famílias de baixa renda: o Programa Apoiar e Comprometer (PAC), que visa dar oportunidade àquelas pessoas que não conseguem preencher as vagas de emprego. A lei prevê, pelo orçamento do município, que o programa pode contribuir com até 190 famílias. Em 2017, segundo a Semcas, o município trabalhou com 115 famílias – o teto estabelecido pelo orçamento. Outro programa é o Aprendiz Cidadão, que visa oferecer o aprendizado no mercado de trabalho e o desvio da drogadição e da criminalidade. Segundo a Semcas, o Aprendiz Cidadão operou com 70 famílias no ano passado, enquanto a lei prevê até 100 famílias acompanhadas. A média de atuação, ao longo dos anos, é de 82 famílias atendidas. Ainda têm 850 famílias na fila de espera neste programa.

 

Universo paralelo

No horizonte, centenas de imponentes prédios formam um paredão de concreto e cimento, simbolizando a potência econômica passo-fundense e ostentando centenas de milhares de salas comerciais em que as importantes decisões são tomadas todos os dias. De acordo com os últimos dados oficiais disponibilizados pelo IBGE, somente mil e duzentas pessoas ganham mais de 20 salários mínimos na cidade. Outras três mil e duzentas ganham acima de dez mil reais por mês em Passo Fundo. A grande maioria reside no centro ou na Vila Vergueiro, região que concentra cerca de 14 mil pessoas.

 

Providências

Sobre o problema das recorrentes inundações relacionadas ao boeiro entupido na Avenida Rio Grande, a Prefeitura de Passo Fundo informou por meio de uma nota que a Secretaria de Obras, através do departamento de engenharia, está estudando uma alternativa para o local, em virtude da dificuldade de escoamento adequado para a água das chuvas.

 

Foto: Matheus Moraes / DM
Fonte: Diário da Manhã
Texto de Daniel Rohrig e Matheus Moraes

Deixe um comentário