Jacques Alfonsin entende que o direito achado na rua gera efeitos particularmente favoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direitos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgências humanas que ele padece
Um dos principais nomes lembrados no Brasil quando o assunto é o direito achado na rua, o advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, Jacques Távora Alfonsin, fala à IHU On-Line, por e-mail, sobre as pessoas que têm se aproximado deste movimento. “Conscientes dessa injustiça e dessa impropriedade manifesta, esses juristas encontram grande aceitação das suas ideias e da sua prática entre pessoas do povo pobre, movimentos, ONGs, estudantes, e até uma parte significativa de professoras/es, juízas/es, promotoras/es e advogadas/os. Aí reside o diferencial que caracteriza novas posturas hermenêuticas da lei, como o direito achado na rua, o ‘positivismo de combate’, o ‘direito alternativo’ e outras denominações que se tem ouvido sobre um mesmo e saudável fenômeno. O de a dignidade humana e a cidadania, por um lado, e o Estado democrático de direito, por outro, deixem de se submeter à clausura formal dos seus postulados, e passem a ser realidade vivida materialmente por todo o povo”.
E Alfonsin deixa clara a sua posição quando lembra que “o direito de manifestação e opinião aqui exercidos não foram dados de mão beijada pela lei. Até pelo contrário. Foram conquistas do povo na rua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída e apoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deram origem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará de identificá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes de construir democracia, não só representativa, mas também participativa”.
Jacques Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Atualmente, é membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e colabora periodicamente com artigos para as Notícias do Dia do sítio do IHU.
Confira a entrevista
IHU On-Line – O que podemos entender por direito achado na rua? Qual sua origem?
Jacques Alfonsin – Precisar, com segurança, o que esse direito seja, não me julgo capaz, tais as nuances teórico-práticas que a sua interpretação e aplicação têm alcançado, mesmo sob as duras críticas que sofrem, ele e o seu contemporâneo “alternativo”. O que posso esclarecer, por mera aproximação do seu posicionamento interpretativo da realidade e do ordenamento jurídico, é que esse direito se constitui e gera efeitos particularmente favoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direitos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgências humanas que ele padece. Trata-se de um direito plural, no sentido de que, sem ignorar e até aproveitar “brechas” de interpretação e aplicação do direito como previsto nas leis do Estado, em favor de direitos humanos não valorizados devidamente, também cria e dá eficácia a formas de convivência social, com poder sancionatório paralelo às que o mesmo Estado prevê em suas leis.
Para ele, o “devido processo legal”, tão enfatizado pelo Poder estatal, somente merece respeito e acatamento na medida em que não se constitua, como a história vem testemunhando, num fim em si mesmo, servindo de barreira formal e material ao devido processo social, de modo a fazer da regulação um obstáculo à emancipação, como Boaventura de Sousa Santos insiste de forma convincente, em seus estudos e na sua prática. Sobre a sua origem, talvez seja útil esclarecer duas coisas.
A primeira, de que o povo, particularmente o pobre e oprimido, sempre teve, historicamente, formas outras de defender sua vida e dignidade, fora das regras impostas por poderes afirmados e reconhecidos institucionalmente como legais. Aqui no nosso país, servem de exemplo as aldeias indígenas, nas quais a propriedade privada, um dos direitos mais protegidos pelas nossas leis, era e ainda é, em muitas delas, totalmente alheia ao seu modo de vida. Os antigos quilombos dos negros fugidos da escravidão, igualmente, constituíram-se em formas visíveis de um direito existente, válido e eficaz, a favor da liberdade, completamente estranho e até oposto ao direito vigente no Estado. Embora muito semelhante ao último, até o direito canônico tem poder sancionatório, tipicamente jurídico, sobre multidões, paralelamente ao Direito estatal.
A segunda, bem mais recente, pode ser localizada nas lições de um jurista professor de direito da UNB, Roberto Lyra Filho, já falecido. Defendia ele e, hoje, muitos dos seus seguidores, um “humanismo dialético, mais próximo da prática, da vida jurídica real, do que a teoria legalista (não confundamos a legalidade com o legalismo que é a sua transformação em fetiche, desconhecendo tudo o que fica fora do bitolamento legislativo e canonizando como jurídico tudo o que ali se põe, ainda que não seja o Direito autêntico, mas o soco do autoritarismo). Por isso mesmo dei à exposição sistemática do meu humanismo dialético, num compêndio alternativo de Introdução à Ciência do Direito, o título de Direito achado na rua, que aplica ao nosso campo de estudos o epigrama nº 3 de Marx (…): “Kant e Fichte buscavam o país distante,/ pelo gosto de andar lá no mundo da lua,/ mas eu tento só ver, sem viés deformante,/ o que pude encontrar bem no meio da rua.”
Não é fácil contestar essa ironia, quando se avaliam os efeitos materiais das previsões que a lei do Estado faz, particularmente no que concerne às garantias devidas aos direitos sociais do povo, como alimentação, habitação, saúde, educação, por exemplo. Cada vez que o povo pobre “se desaperta”, portanto, satisfazendo por sua própria iniciativa, essas necessidades vitais que, embora previstas na lei como direitos humanos, ele nunca os alcança garantidos, quase sempre é julgado como violador da lei ou criminoso. É um tal paradoxo, justamente, que o direito achado na rua denuncia e prova exercendo um direito “terreno”, que o estatal não reconhece, sempre que o examina desde a lua dos seus dogmas e preconceitos ideológicos.
IHU On-Line – Por que o direito achado na rua rejeita as concepções monistas do Direito?
Jacques Alfonsin – Porque aquelas concepções eram pretensiosas demais, como se a lei fosse a única fonte de direito, e o Estado o único ente capaz de garantir-lhe efeitos. Isso ainda vale como verdade indiscutível para grande parte, senão a maioria, dos juristas. Em todo o caso, fica difícil negar que aqueles mesmos efeitos desmentiram esse dogma, pela histórica incapacidade que a lei e o Estado demonstraram e demonstram em cumprir o que lhes é mais indispensável promover, ou seja, a justiça. A lei não é onisciente nem consegue abranger, com poder sancionatório, todo o comportamento humano. Suas lacunas têm sido preenchidas pelos seus intérpretes (juízes de modo particular) de acordo com o que se tem denominado de “espírito do sistema”. Basta um juízo minimamente isento sobre a realidade social, todavia, para se concluir que isso não está dando certo. A sua interpretação e aplicação pelo Poder Público mal tangencia, por exemplo, medidas preventivas ou repressivas das perversas consequências que, entre outras, os movimentos de bolsas de valores, a corrupção política e a devastação ambiental, para lembrar apenas as mais visíveis, provocam sobre toda a humanidade. Questões antigas como aborto e eutanásia, diretamente ligadas à vida das pessoas, questões outras, mais modernas, como a da engenharia genética e a dos clones, ainda são objeto de dúvidas e angústias humanas para as quais o ordenamento jurídico como um todo e o Estado encarregado da sua aplicação enfrentam enormes dificuldades de dar resposta convincente e eficiente.
No que concerne à disciplina da economia, então, com tudo o que essa tem de poder para gerar injustiça social, não há nem necessidade de se acentuar a anemia dos poderes que seria indispensável e lícito contar para a sua regulação. Por tudo isso, ainda surpreende ver-se repetido outro dogma forte daquele monismo, presente em conflitos administrativos e, ou, judiciais, segundo o qual, “o que não está no processo não está no mundo”, assim se advertindo as chamadas “partes” (autores e réus) de que as suas versões e provas são mais importantes do que os fatos efetivamente em causa. Talvez sejam males desse tipo que levaram um jurista português, Castanheira Neves, a advertir que o direito moderno é normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente. Outra não é a razão, por isso mesmo, de que esse direito tem de ser encontrado em outro lugar, lá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contas, é dele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado.
IHU On-Line – O que faz com que juristas e outros operadores jurídicos, intérpretes do Direito Constitucional, voltem às ruas para ter contato com o povo pobre? Qual o diferencial que faz aumentar o número de adeptos do direito alternativo?
Jacques Alfonsin – Há uma inspiração axiológica nesse tipo de conduta profissional que, a meu ver, encontra fundamento numa justificada indignação ética diante da injustiça social que o sistema capitalista gera e reproduz sobre o povo, inclusive com apoio de grande parte da mídia e de intérpretes da lei. A dominação ideológica positivista, normativa e liberal, de cunho marcadamente privatista e patrimonialista, é dotada de um tal poder de dominação, que o mundo todo do direito fica sujeito, aí, apenas aos que já têm, contra os que não têm (“ordem econômica”?), aos que já podem contra os que não podem (“ordem política”?), os que já são cidadãos com seus direitos garantidos, contra os que ainda não são (“ordem social”?). Como se observa, essa realidade testemunha o completo fracasso das três principais ordens constitucionais, sobre o povo pobre do país, sem acesso ao ser, ao poder e ao ter. Assim, os chamados direitos adquiridos, por mais que o seu exercício gere injustiça, impedem a aquisição dos novos, coisa que ocorre, de modo visível, na dominação da terra.
Conscientes dessa injustiça e dessa impropriedade manifesta, esses juristas encontram grande aceitação das suas ideias e da sua prática, entre pessoas do povo pobre, movimentos, ONGs, estudantes, e até uma parte significativa de professoras/es, juízas/es, promotoras/es e advogadas/os. Aí reside o diferencial que caracteriza novas posturas hermenêuticas da lei, como o direito achado na rua, o “positivismo de combate”, o “direito alternativo” e outras denominações que se tem ouvido, sobre um mesmo e saudável fenômeno. O de a dignidade humana e a cidadania, por um lado, e o Estado democrático de direito, por outro, deixem de se submeter à clausura formal dos seus postulados, e passem a ser realidade vivida materialmente por todo o povo.
Aí se conta com outro apoio sólido. Uma reinterpretação moderna que a teologia da libertação fez do chamado “direito natural” e dos direitos humanos trouxe um grande número de cristãos leigos para trabalhar com as CEBS (comunidades eclesiais de base), estudando e trabalhando sob a inspiração do evangelho, formas novas de denunciar injustiças e ilegalidades, reivindicando direitos sociais violados. Gente muito pobre, como índios, catadores de material, miseráveis desempregados, quilombolas, boias frias, moradores de rua, essa multidão até hoje historicamente desprezada e abandonada passou a tomar consciência de que é digna, titula direitos, deve ser respeitada, amar e ser amada.
IHU On-Line – O direito achado na rua pode ser capaz de mudar a imagem de “medo” que se tinha do juiz?
Jacques Alfonsin – Esse é, sem dúvida, um dos seus maiores méritos. Sabendo-se que a distância entre o poder da autoridade e o abuso da arrogante prepotência é muito curta, até alguns/mas juízes/as e promotoras/es censuram seus colegas quando essa distância é vencida cumprindo aquele inconveniente trajeto. Três casos recentes comprovam esse fato. Segundo o Estadão, edição de 23 de junho de 2007, um juiz de Vara do Trabalho de Cascavel, no dia 13 do mesmo mês, apoiado no poder de polícia que tem, “cancelou uma audiência (…) apenas por ter constatado que as sandálias de dedo vestiam os pés de uma das partes.” Segundo sua decisão, isso “é incompatível com a dignidade do Poder Judiciário.” A repercussão foi muito negativa e as muitas críticas contrárias àquela atitude logo se fizeram ouvir. Até o presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), colega daquele juiz, traduziu bem a indignação que o incidente provocou: “Não se pode considerar que a roupa do trabalhador, muitas vezes a única que possui, atenta contra a dignidade da Justiça, pois assim se está dizendo que os mais humildes não são dignos da atenção do juiz e que apenas os bem vestidos a merecem.”
Em Ponta Porã, por ocasião de outra audiência realizada em julho passado, uma juíza federal exigiu de um advogado, não só que a tratasse por excelência, como se levantasse cada vez que ela entrasse na sala onde jurisdicionava. O curioso, mesmo desconsiderada a grosseria da sua atitude, é que a referida juíza provou desconhecer a própria lei. O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil permite, em seu art. 7º que a/o advogada/o ingresse livremente nessas salas de audiência e em outras dependências dos tribunais e repartições públicas, podendo não só “permanecer sentado ou em pé”, como delas “retirar-se”, “independentemente de licença” (inciso VII). Pelo inciso XII do mesmo artigo, a/o advogada/o também pode “falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo.”
Por denúncia de violação dos direitos humanos das/os agricultores sem-terra, feitas pelo MST contra ações propostas pelo Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, no ano passado, liminarmente acolhidas por quatro juízes/as de diferentes comarcas do Estado, até a Associação dos Juízes para a democracia, vendo os vídeos relacionados com o abuso de poder que vitimou as/os sem-terra, reagiu, publicando em um dos seus boletins, o seguinte: “As imagens divulgadas chocam pela brutalidade: bombas jogadas em meio a famílias com crianças, balas de borracha disparadas à altura das cabeças e espancamentos. É contra essas medidas de cunho autoritário e ditatorial que vimos a público manifestar nosso apoio ao MST. Democracia não pode ser uma palavra vazia. Dissolver o MST, torná-lo ilegal, processar e criminalizar suas ações e seus militantes políticos para ‘quebrar sua espinha dorsal’ significa, sem meias palavras: cassar os direitos democráticos dos trabalhadores rurais sem-terra.”
Grande parte do povo, felizmente, toma conhecimento disso e já sabe que juiz/as são servidores/as públicos/as muito importantes, mas não deixam, de ser servidoras/es. Merecedora de respeito, isso toda a pessoa é, nenhuma outra tendo mais obrigação de cumprir esse dever que não aquela que está encarregada de, justamente, garantir que uma tal regra não seja letra morta.
IHU On-Line – Como o direito achado na rua tem sido estudado e discutido nas faculdades de direito?
Jacques Alfonsin – Como toda a ideia de mudança, enfrentando bastante oposição, às vezes, até, debochada e humilhante. As adesões, mesmo assim, são crescentes, pelo reconhecimento dos estudantes, de modo particular, do método teórico-prático de sua ação, marcadamente favorável ao povo pobre, divulgado com um conteúdo profundamente humanístico, agora apoiado pelo chamado NEP (Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos) e a “nova escola jurídica” (NAIR), aquela que prossegue defendendo as ideias do Dr. Roberto Lyra Filho, desde Brasília. O atual reitor da UNB, Jose Geraldo de Sousa Junior, é um dos principais inspiradores e incentivadores dessa moderna fundamentação ética, jurídico-social, de conceber o direito. Os cursos de extensão e à distância que a UNB promove, a propósito, sustentam um novo método pedagógico, em tudo semelhante ao que aconselhava Paulo Freire, no qual o direito é estudado, não a partir de códigos e de doutrinas, mas sim a partir da dura realidade fática sofrida pelo povo. Depois desse trabalho é que tudo chega nas salas de aula e nas bibliotecas, nas pesquisas de Internet, em relação dialético-crítica com o “direito legal”, valorizando suas virtudes, é verdade, mas sem deixar de questionar os mais notáveis defeitos gerados por grande número de quantas/os têm poder de interpretar a aplicar as leis.
IHU On-Line – O direito e a justiça hoje se encontram mais na lei ou mais na rua?
Jacques Alfonsin – Segundo o atual ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, somente na lei, o que, com o respeito que se lhe deve, me parece um pronunciamento extremamente infeliz, para dizer o mínimo. Ele nem seria presidente se a lei que hoje garante o seu cargo não tivesse sido conquistada com o sangue que o povo teve de derramar nas ruas para defender a democracia e o Estado de direito. Uma afirmação daquele tipo revela a antiga concepção de poder, que já deveria ter sido ultrapassada, da espécie vertical, piramidal, todo feito de dominação e não de serviço, um tipo de “direito de propriedade” sobre a lei, como se essa somente pudesse ser reconhecida como respeitada quando pronunciada por um tribunal. Aliás, o fato de os Tribunais, até hoje, admitirem ser chamados de “Cortes” parece um sintoma grave dessa doença. Bem ao contrário do que afirma o Dr. Gilmar, não são poucos os juristas que reconhecem no povo a “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”, coisa que, por sinal, está acontecendo agora mesmo, na medida em que a pergunta me é formulada livremente, eu a respondo livremente e as/os leitoras/es acolhem, ou não, livremente, a minha crítica.
O direito de manifestação e opinião aqui exercidos não foram dados de mão beijada pela lei. Até pelo contrário. Foram conquistas do povo na rua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída e apoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deram origem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará de identificá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes de construir democracia, não só representativa, mas também participativa. As relações sociais, aquelas que geram conflito e injustiça entre essas mesmas pessoas, não escamotearão origens viciadas de opressão que possam se fantasiar ideológica e juridicamente de direito. O lugar social da fala do poder jurídico não será ocupado, com exclusividade, pelas instituições de direito, antes de ouvir quem desse é o verdadeiro titular. Para tanto, é urgente que a linguagem da lei, sua interpretação e aplicação, abandone o seu dizer pedante e incompreensível, que, muitas vezes, disfarça, cinicamente, fantasiado de “o único e soberano direito oficial”, obediência servil à preservação da injustiça.
IHU On-Line – Quais são os novos paradigmas de concepção das garantias materiais que devem sustentar os direitos humanos das/os pobres defendidos pelo direito achado na rua?
Jacques Alfonsin – Ao humanismo dialético pregado pelo Dr. Roberto Lyra Filho, acima lembrado, somam-se, hoje, vários outros paradigmas interpretativos da lei e do direito, influenciando novas maneiras de considerar os fatos que lhe deram origem e vigência, para que o legalismo não sepulte, de vez, a legalidade, como aquele jurista denunciou. Doutrinas garantistas, substancialistas estão passando em revista o positivismo normativista que, talvez, ainda conte com a maioria dos intérpretes da realidade, da lei e do direito. As obrigações públicas do Estado democrático de direito são cobradas com mais rigor e até a tão traída função social da propriedade começa a ter algum efeito prático contra quem a infringe. Não conheço, como deveria, todas essas novas concepções teórico-práticas, que estão descobrindo as vias concretas de, especialmente os direitos sociais, alcançarem respeito e garantia concretamente. Talvez baste lembrar que elas estejam alcançando o “acesso ao mundo da vida”, inclusive no terreno processual, que tenta dar solução aos conflitos humanos, para que esse seja auxiliado pela “hermenêutica, naturalmente incompatível com o pensamento dogmático”, como ensinou um velho professor de direito aqui da Unisinos que, lamentavelmente, também já nos deixou. Do vício de se atribuir a pecha de ideológicos apenas aos outros, como ele lembrou, com base em Terry Eagleton (“os partidários do socialismo são ideológicos, mas os do capitalismo, não”) o direito achado na rua parece se defender muito bem como o NEP e a Nova Escola jurídica fazem hoje. O primeiro, em sua página na Internet, deixa claro que “diversifica os papéis e as responsabilidades do direito por meio da integração compreensiva de seus determinantes sociais. A prática jurídica é contextualizada, obtendo-se com isso uma aplicação e inteligibilidade mais seguras.”
IHU On-Line – Qual deve ser o papel do povo e dos políticos para que o direito achado na rua cresça e se desenvolva com mais força na sociedade?
Jacques Alfonsin – Apesar de vivermos numa sociedade sujeita a uma economia consagradora de desigualdades extremamente injustas, há sinais claros de que grande parte do povo já se organizou e tem força de pressão atuante em favor dos seus direitos, a ponto de empoderar formas de defender um direito contrário, ou no mínimo paralelo ao “direto oficial”, não contaminado por sanções que preservem aquelas desigualdades, em nome da igualdade, sustentem opressões, em nome da liberdade e, principalmente, reduza toda a relação humana à propriedade. Políticos e representantes seus, junto à administração pública e ao Judiciário, se quiserem ser fiéis a esse mesmo povo, precisam recuperar o sentido etimológico do mandato que receberam dele. Essa palavra vem do latim e significa mão dada. Que essa mão nunca o abandone, de modo todo particular hoje, bem no meio da rua, onde ele se encontra e sofre.
Entrevista realizada por Graziela Wolfart
Este conteúdo foi, originalmente, publicado aqui.