Em 5 de novembro de 2015, a cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais, foi palco de um dos maiores desastres ambientais da história do Brasil, que resultou na morte de 19 moradores, desalojou centenas de famílias e enterrou o distrito de Bento Rodrigues e outras localidades vizinhas. Para além do impacto imediato, estima-se que o dano possa chegar a 1 milhão de pessoas, se considerada toda a extensão do Rio Doce, bem como ao ecossistema e à biodiversidade. A tragédia tem ainda impacto na economia local, no emprego e na renda de milhares de pessoas.
As barragens pertencem à Mineradora Samarco que é controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton. A BHP Billinton, por sua vez, é uma fusão da australiana Broken Hill Proprietary Company com a inglesa Billiton, que atua em diversos países no mundo e já foi responsabilizada pela contaminação do meio ambiente no Peru e em Papua Nova Guiné. A Vale é controlada pela Valepar (com 53,9% do capital votante e um terço do capital total), além de ter capital aberto em bolsas de valores, com participação de investidores brasileiros e estrangeiros. O governo federal e o BNDESpar também possuem pequena participação na empresa. A Valepar por sua vez é controlada por fundos de investimentos administrados pela Previ, pela Bradespar (Bradesco), pela multinacional japonesa Mitsui e pelo BNDESpar.
Embora o caso esteja sendo apreciado pela justiça brasileira, a complexidade dos atores nacionais e internacionais envolvidos, bem como a recorrência de denúncias de destruição ambiental e as violações de direitos humanos por parte de mineradoras ao redor do mundo fazem com que, para além da reparação aos danos imediatos, este tipo de denúncia se insira num quadro mais amplo, denominado por alguns como “arquitetura da impunidade”. Nos últimos 40 anos, corporações transnacionais e os Estados que as apoiam (Estados de acolhimento e Estados de origem) construíram um quadro jurídico abrangente e vinculativo de comércio e investimentos por meio de tratados e acordos, incluindo resoluções de instituições internacionais – como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – e mecanismos de solução de controvérsias investidor-Estado. Esta arquitetura confere enorme poder econômico, jurídico e político às corporações transnacionais.
A responsabilidade das corporações em casos de violações de direitos humanos tem chamado a atenção de ativistas e acadêmicos, na medida em que há cada vez mais indícios do caráter sistemático destas ocorrências, seja com o envolvimento de empresas em violações cometidas por Estados (via o fornecimento de tecnologias, por exemplo), seja com violações cometidas pelas próprias empresas. Para ilustrar a forma pela qual corporações fornecem as tecnologias usadas para a violação de direitos humanos podemos mencionar os contratos de centenas de milhares de euros entre a União Europeia e empresas – como a Airbus, Thales e Finmeccanica – para o desenvolvimento de softwares, sensores, radares e drones para o monitoramento das fronteiras externas da UE, de modo a impedir a entrada de imigrantes.
Outro exemplo é o envolvimento de empresas israelenses nas violações sistemáticas dos direitos humanos dos palestinos, ao garantir as tecnologias sofisticadas para vigilância e repressão nos territórios ocupados – e a exportação destas tecnologias para uma série de países, dentre os quais o Brasil, apoiando indiretamente as violações persistentes por parte das forças policiais. No caso da responsabilidade direta por parte de empresas, há inúmeros exemplos de violações aos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais; aos direitos trabalhistas – como liberdade sindical – e violações ao direito à vida – tanto diretamente por conta de mortes resultantes de crimes ambientais, quanto pela contaminação do meio ambiente, como demonstrado no caso de Mariana.
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Movimentos sociais, sindicais, indígenas e comunidades afetadas têm denunciado o ambiente de permissividade e impunidade no comportamento das multinacionais, propiciado por políticas institucionais de bancos regionais e internacionais de desenvolvimento, instituições financeiras internacionais, instituições regionais e Estados nacionais. Por décadas, há registros de tentativas fracassadas de regulamentação da atuação destas empresas no âmbito da ONU, por exemplo. Disputas relevantes persistem na atualidade na medida em que estes movimentos têm lutado pela criação de marcos legais internacionais que regulamentem o poder corporativo.
Nos anos 1970, foi criada uma comissão no Conselho Econômico e Social da ONU para investigar a atuação das multinacionais e elaborar um código de conduta. A comissão foi extinta duas décadas depois, sem nenhum avanço. No final dos anos 1990, a subcomissão para a promoção e a proteção dos direitos humanos criou um grupo de trabalho sobre o tema que esboçou um conjunto de normas de conduta para as corporações, abandonado nos anos seguintes. Em 2005 a Comissão de Direitos Humanos criou uma relatoria especial sobre o tema, cujo documento final recomendou uma série de princípios norteadores para a ação das corporações, mas sem nenhuma vinculação legal.
Por sua vez, parte das grandes corporações globais, reunidas no Fórum Econômico Mundial de Davos, tem empreendido esforços para assumir um papel mais ativo no desenho de instituições e regimes internacionais, por meio de propostas como o Global Redesign Initiave. O relatório final deste grupo de trabalho argumenta, por exemplo, que as instituições internacionais precisam se adequar a um mundo no qual, segundo as palavras do próprio relatório, “a força econômica e o poder político estão mais dispersos e no qual os governos nacionais não são os intermediários principais nas relações entre as nações”.
Para tanto, defendem a redefinição dos arranjos de governança global para um sistema multifacetado (que denominam multi-stakeholder governance), no qual as instituições intergovernamentais convivam com outros componentes (empresas, ONGs), de modo a aproveitar a “expertise e os recursos de atores não estatais, seja de maneira formal (legal) ou informal (voluntário ou privado)”. Processos de consulta e diálogo com multinacionais já estão em curso há algum tempo, incluindo compromissos voluntários ligados à ideia de responsabilidade social corporativa, como a Agenda 21 lançada no final da Eco92 e o Global Compact das Nações Unidas.
Também no âmbito regional, corporações têm avançado de forma indireta na elaboração política, por meio de tratados de proteção a investimentos, que incluem as chamadas cláusulas de solução de disputa entre investidores e Estados (ISDS, sigla em inglês para Investor-State dispute settlement). Por meio deste mecanismo, empresas multinacionais podem interpelar Estados fora dos sistemas judiciários domésticos, em cortes de arbitragem extrajudiciárias ligadas ao Banco Mundial (Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre investimentos) e à ONU (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional – Uncitral). Segundo um levantamento da ONG Public Citizen, uma série de disputas entre investidores e Estados já foram objeto de arbitragem internacional no âmbito do Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) e de outros tratados de livre comércio dos EUA na América Latina. Outros casos conhecidos dizem respeito ao processo da multinacional sueca Vattenfall contra o Estado alemão pelo fechamento de uma planta de energia nuclear e o processo da Philip Moris contra o Estado australiano por mudanças na legislação antitabaco.
O cenário mostra que a atividade econômica que se desenvolve a partir do centro do capitalismo global se expande, indo além dos limites territoriais e jurídicos do Estado-nação. O papel dos Estados na economia mundial durante as últimas décadas tem estado indissociavelmente ligado à negociação das interações entre a lei nacional e os agentes econômicos transnacionais. O objetivo tem sido facilitar as operações, eliminar os obstáculos das companhias, bem como garantir e otimizar – graças à capacidade técnica, administrativa e militar do Estado – os direitos de propriedade e os contratos firmados. O papel do Estado tem sido de produzir e legitimar os novos regimes legais, ajustando seus marcos normativos e aparatos burocráticos.
Muito embora este processo de globalização esteja em franca expansão há décadas, na grande maioria das vezes a mídia se refere às esferas diplomáticas para abordar esta realidade. Na verdade quando olhamos com a devida atenção as interconexões e disputas entre interesses de Estados, constatamos a presença de uma série de outros atores, como corporações multinacionais, organizações não governamentais e movimentos sociais, que também se articulam transnacionalmente.
A ideia de governança global, muito em voga nos anos 90, refletia esta presença crescente de atores não-estatais mas negligenciava a dimensão do conflito, na medida em que buscava acrescentar elementos informais de governança (via empresas e ONGs) aos arranjos intergovernamentais tradicionais, por meio do discurso da coordenação de políticas. Contudo, a novidade então seria o desenvolvimento de elementos privados de autoridade, de alcance global, que regulariam tanto os Estados, como boa parte da vida econômica e social transnacional, e incluiriam, entre outros, oligopólios globais de seguros, cartéis regionais e globais em diversos setores da produção industrial e agências privadas de classificação de títulos, com a imposição de políticas a governos em todos os níveis. Neste sentido, devemos compreender que a construção, o desenho e o funcionamento de regimes e instituições internacionais são verdadeiras arenas de disputas assimétricas não apenas entre Estados, mas fundamentalmente entre corporações, ONGs, movimentos sociais, entre outros atores.
Por outro lado, há um crescente movimento para dar publicidade a violações de direitos humanos cometidas por corporações multinacionais. Mais de uma centena de organizações (entre ONGs, movimentos sociais, indígenas, sindicais e comunidades afetadas) fazem parte de uma campanha transnacional (Dismantle corporate power and stop impunity) que propõe a adoção de um tratado internacional, com normas vinculantes, para estabelecer princípios de conduta e punição a violações por parte das corporações. Segundo estas organizações, as violações (danos à vida, poluição ambiental, destruição de comunidades tradicionais, ameaça à saúde pública e à segurança alimentar, entre outras) não seriam acidentes ou acontecimentos pontuais, mas condição de injustiça sistêmica, sustentada por políticas institucionais.
O caso de Mariana expõe de maneira clara a insuficiência da tentativa de delimitação das esferas nacional e internacional. Pelo grande número de impactados, pelas enormes consequências ambientais, pelas diversas esferas de regulamentação estatal, pela participação direta e indireta de várias empresas, a tragédia de Mariana envolve uma série de atores: associação de moradores, ambientalistas e movimentos por justiça ambiental e por direitos humanos, os três níveis de governo da federação, ministério público, Samarco, Vale, BHP Billinton. A luta pela indenização das vítimas e pela recuperação ambiental se desenvolve tanto na esfera jurídica, quando nas esferas políticas nacionais e internacionais.
Assim, acreditamos que dever-se-iam constituir movimentos de mobilização que vão além do sistema binário global versus nacional, de modo a se concentrar nas poderosas instituições globais que têm desempenhado um papel fundamental na implementação da economia corporativa global. Como pode ser visto no caso de Mariana, o global também pode ser constituído dentro de um local especifico do território nacional.