“A erradicação da pobreza, a garantia da dignidade da pessoa humana, a redução da desigualdade ficam dependuradas na letra da lei como vitrine”.
O que é, mesmo, o direito à cidade? Que relações sociais, políticas, econômicas, éticas, podem estar implicadas nesse direito? Quais sanções podem ser aplicadas pelo Poder Público no caso de ele ser ameaçado ou violado? Se a própria palavra cidade tem a mesma raiz de cidadania, como as cidades defendem e garantem os direitos reunidos sob uma denominação dessa grandeza e solenidade ?
Perguntas como essas sugerem a busca de respostas previstas nas leis, nas decisões dos tribunais, nas providências tomadas pelos Poderes Públicos, nas opiniões doutrinárias relacionadas com o Direito Urbanístico, por exemplo. Não foi o que aconteceu entre os dias 23 e 27 deste janeiro, em Londrina, no 14º Encontro Intereclesial de CEBS (Comunidades Eclesiais de Base) para estudar e encaminhar propostas de ações coletivas, objetivando enfrentar os “Desafios do mundo urbano”, tema chave deste Encontro.
Muito pouco, ou quase nada desse “mundo do direito” apareceu nas discussões das/os delegadas/os presentes. Se alguma referência lá surgiu, ressalvada alguma que pode ter-nos escapado, não passou, sequer, pela Constituição Federal ou pela lei 10.257 de 2001 (Estatuto da Cidade).
O fato pode ser interpretado sob mais de uma hipótese. A primeira de que o/a morador/a da favela, do cortiço, da “vila”, da “área verde”, da “invasão”, da ocupação, das áreas de risco, presente ou representado neste encontro, praticamente só toma conhecimento do poder dos “direitos”, quando o oficial de justiça lhe entrega um mandado de reintegração de posse, dando-lhe prazo para se desapossar do que está lhe servindo de base física da sua própria vida.
Ou seja, em vez desse outro e estranho “mundo dos direitos”, tão incompreensível quanto inacessível para ele ou ela, garantir-lhe uma vida cidadã, de bem-estar como aquela prevista na parte final do artigo 182 da Constituição Federal e, direta ou indiretamente, em várias disposições do Estatuto da cidade, o peso da lei lhes cai sobre a cabeça como pura e duríssima repressão, indiferente até ao destino posterior que lhe permita se abrigar em outro espaço urbano.
Por via de consequência, a segunda hipótese justificativa dessa surpreendente ausência de discussão do direito à cidade, num Encontro que reunia milhares de pessoas pobres, pode ser encontrada no descrédito – introjetado até inconscientemente as vezes – por elas já atribuído a esse outro “mundo”, justamente pelo visível desprezo que os Poderes Públicos, Judiciário inclusive, tratam-nas, sem outra explicação que não seja o de serem pobres.
Nem sempre se percebe como a força classista à qual pertence a maioria das/os representantes do Poder Público, encontra satisfação, por vezes mórbida, no exercício da sua autoridade contra essa fração de povo. A grossura do preconceito e da ideologia aí presente geralmente se disfarça com as promessas generosas escritas nas leis para, de fato, não serem cumpridas. A “erradicação da pobreza”, a promoção da “dignidade da pessoa humana”, a “redução das desigualdades sociais” a “promoção do bem de todos”, da “função social da propriedade”, como a Constituição prevê, ficam dependuradas na letra da lei como vitrine, amostra de que, realmente, aqui se vive numa democracia e num Estado de direito, por mais que nada disso seja lembrado quando a dita autoridade aplica a lei.
Encurralado nessa ficção hipócrita, o direito à cidade, dentro do qual estão presentes de modo muito particular, todos os direitos humanos fundamentais sociais dos/das seus/suas habitantes, só pode sofrer como falsa também a sempre lembrada cidadania, a única com poder suficiente para revelar aquele direito como válido e eficaz.
O direito à segurança da posse da terra, mesmo a não titulada por qualquer documento legalmente hábil, para garantir moradia, saneamento básico, transporte, saúde, emprego, condições materiais de uma via digna, enfim, isso sim apareceu com toda a força de exigência nas plenárias e nos grupos de trabalho formados pelas/os participantes do Encontro.
A indignação ética pelo descaso, pela indiferença, pelo atraso permanente com que a satisfação dessas necessidades vitais, como integrantes do direito à cidade, é tratada, ficou marcada por vários depoimentos prestados por vítimas desse desleixo público e por lideranças de movimentos populares dedicados à defesa de direitos humanos, especialmente o da moradia.
Raquel Rolnik prestou serviço de assessoria ao Encontro, não só pelo seu conhecimento dos problemas urbanos – foi relatora especial para o direito à moradia do Conselho de Direitos Humanos da ONU – como pela sua reconhecida proximidade e defesa da gente pobre das periferias das cidades. Diante dos permanentes conflitos por terra, em uma das suas obras identificados como “A guerra dos lugares”, geralmente julgados contra as famílias aí residentes, pela cultura ideologicamente privatista da administração pública e do Poder Judiciário, raras exceções a parte, Raquel mostrou já ser hora de as vítimas desse estado de coisas julgarem o Estado e quem as lidera ou representa “voltarem às comunidades”, para junto delas garantirem uma verdadeira “autodeterminação territorial.”
Num auditório caracterizado pela pluralidade religiosa, mas toda ela de inspiração cristã, suas palavras caíram como chuva em terra seca. Ela estava repetindo, por outras palavras, o que disse Jesus Cristo sobre o Estado opressor e o poder público da sua época: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, sois como sepulcros caiados, por fora parecem belos mas por dentro estão cheios de ossos de cadáveres e podridão. Assim também vós:por fora pareceis justos diante dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e injustiça.” “Colocais fardos pesados sobre os ombros dos homens, mas não estais dispostos a levantar um só dedo para movê-los” (Evangelho de São Mateus, capítulo 23).
Realmente. A qualquer Estado, mesmo aquele com aparência de legalidade, auto proclamando-se como democrático e de direito, mas governado por patifes, corruptos e ladrões, a cidadania não deve obediência. Resiliência contra as suas leis já se encontra amparada pelo conhecido “direito achado na rua.” As CEBS brasileiras parece terem saído deste Encontro dispostas a resistir e desobedecer.