“A gente era infeliz e sabia.”
Quando ultrapassamos a idade escolar e ingressamos no mercado de trabalho, é muito comum ouvir as pessoas proclamando a saudade que sentem dos tempos de escola. As pessoas contam casos de como era uma época divertida e despreocupada, quando tudo era mais simples e alegre. “Que tempo bom. A gente era feliz e não sabia.”
Na minha experiência pessoal, na escola, eu fui apresentada a várias coisas: à matemática, às letras, às ciências e ao racismo. Foi quando eu saí da minha bolha familiar e expandi meus horizontes na escola que eu comecei a ver que eu não era tratada igual em todos os espaços. Até então, dentro da minha casa, meu pai era negro, minha irmã era negra e eu sou negra. Eu tinha dois iguais para me identificar e me sentir “normal”. Mas, na escola, o jogo mudou. Na sala, eu era a única negra. E embora pra mim, os brancos fossem meus iguais, já que minha mãe é branca e eu tinha essa referência em casa, para os brancos eu era beeeem diferente. E eles me mostraram isso de todas as formas possíveis.
Não que eu já não tivesse me deparado com o racismo antes. Sendo negra, filha de mãe branca, já fui considerada uma obra de caridade de uma mulher branca bondosa que passeia com a filha da empregada. Convivendo com uma família toda branca, descendente de italianos, eu já havia notado que eu não seria nunca considerada a prima mais bonita, o bebê mais fofinho. Mas eu ainda não tinha notado a que se devia essa diferença, por ser ainda muito pequena. Eu só fui apresentada a esta realidade na escola.
Na escola, eu não aparecia em nada. Eu não era protagonista de nenhuma apresentação, ficando sempre relegada a posição de florzinha ou árvore do cenário. Para ser justa, eu fui protagonista de uma peça de teatrinho porque minha irmã havia sido protagonista anos antes e eu já tinha a roupa. Eu lembro de isso ter ficado muito claro na minha cabeça, com a professora falando pra turma toda: “a Nayara vai fazer o Espírito da Natureza porque ela já tem a roupa”. Eu não tinha muitos amigos, eu não fui convidada para muitas festas de aniversário. Nas festas que eu fui, eu não fui autorizada a fazer parte das apresentações de Sandy e Junior, Xuxa, Eliana porque elas não eram como eu. Eu ficava sempre assistindo. Quando chegaram as Spice Girls, eu finalmente podia participar, mas a esta altura, eu já nem tinha vontade de tentar ser inclusa. Eu não tinha muitas possibilidades de fantasia para as festinhas de princesa. Quando fiz quinze anos, eu via as meninas em polvorosa com suas dezenas de convites para bailes de debutante. Eu fui em apenas uma festa de 15 anos, na minha vida toda, de uma amiguinha negra.
Eu me destacava na minha capacidade de tirar boas notas. E, junto com isso, meus dias mais felizes eram dias de prova em dupla, quando eu tinha muitos “amigos” que faziam questão de mim. Nos outros dias, eu era a menina “magrela”, “beiçuda”, “testuda”, que vestia uniforme GG pesando menos que 40 quilos (provavelmente pra tentar se esconder) e esquisita que ficava lá no fundão.
Mas não era o bastante. Eu nunca fui o bastante.
Eu ouvi muitas vezes da diretoria sobre o esforço que meu pai fazia para me manter em boas escolas ao menor sinal de falha. Vejam bem, eu era uma menina quieta e tímida. Não é que eu botava bombas no banheiro ou coisa que o valha. Eu tinha a minha atenção chamada de maneira rigorosa pelas menores falhas (como conversar muito numa aula ou ter passado cola pra alguém). Eu recebia ocorrências e suspensões por “conversar na sala”. Percebam que, para uma criança sempre relegada, a opção de conversar com alguém é atrativa demais para se negar. Mas quando isso acontecia, eu era sutilmente lembrada de como eu e meu pai éramos diferentes de todos e de como eu precisava ser melhor e mais esforçada, mesmo que minhas notas, toda a vida, fossem realmente as melhores da sala. Mas não era o bastante. Eu nunca fui o bastante.
A escola não tinha heróis e personalidades negras pra me apresentar. E eu cresci me vendo escravizada nos livros didáticos. Eu cresci vendo meus coleguinhas falarem dos negros escravizados como criaturas irreais. E essas “criaturas” eram toda a referência que eu tinha do meu passado. Lembro do trecho do livro de história que contava, “passandinho”, sobre o quilombo dos Palmares. Terminava com “e todos os negros foram exemplarmente assassinados ou presos”. Exemplarmente. E-xem-plar-men-te. As religiões de matrizes africanas nunca foram nem citadas na minha época escolar. Na minha escola, tinham grandes feiras de cultura anuais, mas nelas nunca falaram muito bem dos países africanos, que os professores consideravam apenas “África” e, dos trabalhos que me lembro de fazer sobre países, eu, a única eterna aluna negra da sala, só tive oportunidade de fazer Itália e Alemanha. Também teve um ano de religiões, com apresentações sobre Hinduísmo e Judaísmo, mas nunca vi o candomblé. Hoje, como professora, eu sei a falha gigantesca dos meus professores de me afastarem consistentemente do estudo das minhas origens.
Eu não tinha professores negros também. E os únicos negros da escola eram as cantineiras, faxineiros, o moço das balas que ficava na portaria. E eles eram chamados de “o tio da Nayara”. “A mãe da Nayara”. E assim, eu era ensinada diariamente a odiar aquelas pessoas, a me manter distante delas. Logo elas, que eram quem tinha realmente alguma coisa a me ensinar ali dentro.
Na minha época, não tinha dia da Consciência Negra em Belo Horizonte. Então, não tinha feira disso. Não tinha nada disso. Ser negro não era mencionado. Ser negro nunca foi mencionado nas escolas que eu passei. Eu lembro de ter desejado fazer “jazz”, porque todas as colegas da escola estavam na febre de fazer. Mas a professora me atentou para o fato de que “pra fazer jazz, precisava fazer coque bem puxadinho e você não vai conseguir fazer isso direito com esse cabelo”. Eu nunca cheguei a praticar dança na infância, mas eu conheço as histórias das várias amigas negras que iam de coque pra aula, tão esticados que davam dor de cabeça e puxavam seus olhos. Elas também raramente foram protagonistas dos espetáculos.
Foi nessa época também que as meninas da sala começaram a levar escovas para a aula e passavam o dia inteiro penteando os cabelos lisos e fazendo tranças uma nas outras. Eu não poderia pentear meu cabelo com escova e ninguém queria fazer trança em mim porque eu era “piolhenta”, mesmo nunca tendo tido piolho. E, embora eu não me lembre de ter refletido conscientemente sobre isso, esse foi o ano da minha primeira química de alisamento.
Daí você vai chegando à sua adolescência e os desejos começam a aparecer. Seus amigos já estão ficando, mas você não é crush de nenhum colega. A pressão para beijar pela primeira vez vai crescendo, mas você é só a menina esquisita, que se esforçou para ficar cada vez mais diferente (“esquisita”) para justificar para si mesma a opinião dos outros. Lá pros meus 15, 16 anos, eu vestia preto, coturno, roupas extraordinariamente largas para meus sempre poucos quilos e ouvia toda classe de rock que fosse considerado mais pesado pelos meus colegas. Eu queria ser diferente. Visivelmente e indiscutivelmente “esquisita”, já que assim me consideraram desde sempre.
Meu QUASE primeiro beijo foi memorável e doce: numa brincadeira de verdade ou consequência, me beijar era a consequência. E enquanto eu tremia internamente por estar tão perto desse momento, mesmo que não fosse como eu imaginei, eu notei gritos e protestos e a brincadeira parou porque, quando um irmão mais velho de alguém ouviu o motivo da confusão dos adolescentes, ele concordou que as pessoas estavam “apelando” e “fazendo sacanagem”. Imagine-se nesse lugar. E enquanto muita gente “alinhava BBL” (uma brincadeira que consistia em pegar um dos participantes desprevenidos e escolher alguém para ele dar um beijo na boca de língua), eu era convidada para “alinhar Hoje Não” (uma brincadeira que consistia em pegar um dos participantes desprevenidos e bater nele), ao que eu alegremente aceitava por estar inclusa em qualquer coisa, finalmente. Eu só fui beijar pela primeira vez anos depois, com muita insegurança, ouvindo aqueles berros dentro da minha cabeça e com aproveitamento zero.
Eu tinha um agravante na escola: eu era péssima em Educação Física. Isso era mais um motivo para ser constantemente excluída e, quando as pessoas escolhiam os times, eu era, naturalmente, a última. Os times tiravam dois ou um para saber quem ia ter que ficar comigo e quando saía o resultado, um time comemorava ruidosamente e o outro ia reclamar com a professora aos berros: “Pô, fessora, isso é sacanagem, a gente já ficou com ela aula passada”. Então, eu sentava no canto da quadra e lá eu ficava até o final, soltando ofensas cruéis sobre mim mesma quando uma bola caía na minha cara e eu não conseguia impedir (e como era curioso que bolas sempre batiam na minha cara, coincidentemente, estou pensando aqui agora) e, enquanto o rosto queimava e as ondas de dor iam e vinham, eu ria muito mais alto do que todo mundo para não correr o risco de ser mais ofendida por alguém, uma prática comum em quem sofre opressão escolar: “já sou beiçuda e ainda tomo uma bolada na cara, né?” “Também com esse tamanho de testa, impossível não me acertar”. Eu ria muito. Eu também apanhava com frequência. Por qualquer motivo. Meu lanche, minha nota, não ter feito a prova de alguém, não ter feito o para-casa de alguém, não ter conseguido dar um saque no vôlei. Já fui arremessada rampa abaixo do terceiro andar da escola. Tenho as cicatrizes ainda dos pontos que tomei.
Além de ser destaque nas notas, eu também era destaque em outra lista: a lista das mais feias da sala. Às vezes, eu alcançava o ranking de mais feia da escola. Bons anos. Eu sempre bombava nessas listas, taí um momento que eu nunca era esquecida. Há pouco tempo, em um grupo de amigas negras, resolvemos olhar as fotos do facebook das nossas “mais bonitas da sala”. E ficamos chocadas ao perceber que, na verdade, fomos enganadas o tempo todo. Hoje, nos esforçamos diariamente para nos achar lindas e rainhas, mas tínhamos a impressão, ainda hoje, de que “melhoramos” e que éramos feias mesmo, na época. Mas qual não foi nossa surpresa ao notar que nunca fomos feias e que as mais bonitas da sala tampouco são bonitas. Sabe o que elas são? Loiras. Brancas. Apenas isso.
É importante notar que de todas as passagens que relembro da escola, em nenhum momento houve intervenção da equipe pedagógica. Eu era apenas uma desajustada da sociedade e essa constatação bastava para todo mundo. Hoje fala-se em bullying, muitas vezes um eufemismo escroto pra esconder racismo. Eu só recebia intervenção pedagógica quando o erro era meu mesmo.
O que é mais triste, no fim das contas, ao fazer esse pequeno memorial da minha vida escolar, é perceber que a minha foi fácil. A minha vida escolar foi privilegiada: eu tive acesso a escolas boas, algumas particulares. Os meus traumas são pequenos diante das histórias e traumas de muitos amigos negros, imensamente piores que os meus e aí, eu te pergunto, você consegue imaginar?
Pesquisas apontam que crianças negras são mais propensas a serem castigadas pelos seus professores e mais propensas a apanhar na escola. A evasão escolar é consideravelmente mais alta para os negros, e de cada 5 crianças fora da escola, 3 são negras. Hoje, vários pesquisadores estudam as consequências do racismo para o aprendizado das crianças e suas vidas adultas.
Você consegue imaginar o que é ser uma criança sendo massacrada diariamente sem receber NENHUM auxílio sobre como se defender? Você consegue imaginar as consequências disso para uma pessoa adulta?
Bons tempos, vocês dizem. Saudades, vocês dizem. “A gente era feliz e não sabia”, né? Eu sabia. Que vocês eram felizes? Sempre soube.