A Lei Maria da Penha (Lei 11.340 de 2006), que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, é uma demanda antiga dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil. Constitui uma resposta ao grave problema da violência contra as mulheres cuja elaboração tornou-se possível a partir da decisão que condenou o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso de Maria da Penha Maia Fernandes (2002). Elaborada por um consórcio de organizações não governamentais feministas, por juristas e parlamentares alinhados com a defesa dos direitos das mulheres, e com o apoio da, então, recém-criada Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, o texto legislativo reflete essa luta, o que foi reconhecido pelas Nações Unidas, que, em 2008, destacaram a Lei Maria da Penha como “o culminar de uma prolongada campanha das organizações de mulheres, envolvendo também organismos nacionais, regionais e internacionais, tais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.
No contexto nacional, a LMP é reconhecida por seu caráter inovador e paradigmático com relação às medidas que introduz com o objetivo de oferecer uma abordagem mais compreensiva da violência contra as mulheres. Entre as mudanças promovidas pela legislação, encontra-se a adoção da definição de violência contra a mulher presente na Convenção de Belém do Pará e a classificação da violência doméstica e familiar como violação dos direitos humanos. Essa violência é nomeada como resultado de relações de dominação e hierarquia estruturadas a partir da desigualdade de gênero. Dessa forma, a lei reconhece que a violência doméstica e familiar não é problema que afeta apenas algumas mulheres, repudiando a possibilidade de tratá-la como uma questão de caráter privado ou relacionado ao histórico individual e afirmando que, potencialmente, pode afetar todas as mulheres no curso de sua vida.
A definição de violência também é ampliada para abranger abusos e constrangimentos de natureza física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Expande também o conceito de vínculo familiar e se refere a pessoas unidas por vínculos de intimidade e afeto; vínculos que podem ser atuais, passados e existir independentemente da coabitação (para os casos de namorados, por exemplo). Outra inovação da lei: as relações interpessoais independem de orientação sexual.
A LMP representa um conjunto de diretrizes para responsabilização do(a)s autore(a)s de violência, de proteção das mulheres e seus/suas familiares, de acesso a direitos e à justiça e de ações de prevenção, incluindo ações no campo da educação escolar. Considerando esse conjunto de medidas, a LMP se apresenta como vetor para as políticas públicas e um instrumento de transformação social forjado nas teorias e na práxis do movimento feminista, inspirado nos movimentos de mudanças legislativas e políticas de direitos das mulheres no contexto internacional.
Com tantas mudanças, a legislação requer que governos e instituições de justiça se adaptem para acolher as novas atribuições e competências correspondentes às medidas previstas, a partir de uma abordagem integral e articulada com a perspectiva de gênero, ou seja, deslocando as mulheres para o centro das atenções, ao reconhecê-las como sujeitos de direitos protegidos pela lei, e aplicando de forma equilibrada e de acordo com as especificidades de cada caso as medidas que responsabilizem o(a)s autore(a)s da violência e permitam às mulheres superar a situação em que se encontram, para que possam reconstruir ou constituir novas relações numa vida sem violência.
Nesses dez anos, foram registrados muitos avanços na implementação da lei, tanto no que se refere à criação de serviços especializados, à formação e sensibilização de profissionais para o atendimento, quanto no que diz respeito à conscientização da sociedade quanto à gravidade da violência doméstica e familiar como problema a ser tratado por meio de políticas públicas especializadas e direcionadas não apenas a punir a violência, mas também, e principalmente, a prevenir e reduzir a tolerância com relação a novos atos.
Contudo, os avanços são discretos diante do tamanho da tarefa a ser realizada. Parcelas da sociedade brasileira e das instituições que devem aplicar a lei e proteger os direitos das mulheres permanecem resistentes às mudanças culturais e institucionais necessárias para que a lei seja aplicada de forma integral e eficaz. Em dez anos, a Lei Maria da Penha foi alvo de permanentes ataques, incluindo declarações de inconstitucionalidade que pretenderam suspendê-la por ferir os princípios constitucionais de igualdade entre homens e mulheres. Outras ameaças circulam no Congresso Nacional em meio a mais de cem projetos de lei que trazem propostas de combater a violência contra as mulheres, alguns deles afastando a perspectiva de gênero e/ou ignorando a abordagem integral prevista na lei.
Nesse cenário, no ano em que a Lei Maria da Penha completa 10 anos, as celebrações estão caracterizadas por um misto de alegria e apreensão. Como ocorre nessas datas, os momentos de reflexão se dedicam a exaltar os acertos e os avanços, analisar os aspectos desafiadores e renovar os compromissos com vistas a uma implementação mais eficaz e efetiva para a transformação de uma sociedade mais igualitária entre homens e mulheres.
Neste artigo, proponho-me a realizar esse balanço a partir de um evento recente e que ensejou perguntas sobre como queremos conduzir a implementação da LMP nos próximos anos e em quais condições sociais e políticas isso ocorrerá. Refiro-me à controvérsia em torno de um projeto de lei em tramitação no Senado Federal e responsável por catalisar forte reação entre os diferentes setores envolvidos com a aplicação da lei e defensora(e)s dos direitos das mulheres.
O PLC 07/2016
O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 07/2016 objetiva alterar a LMP no Capítulo 3º, que trata do atendimento pela autoridade policial e dispõe sobre “o direito da vítima de violência doméstica de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por mulheres”.
Sinteticamente, o projeto introduz três novos artigos na LMP. Os dois primeiros artigos tratam de diretrizes para que o atendimento policial e pericial seja especializado tanto no que toca à adequação de espaços físicos, quanto na escuta ativa e humanizada, evitando a revitimização das mulheres. O terceiro artigo modifica o texto legislativo para que a(o)s delegada(o)s de polícia possam aplicar as medidas protetivas de urgência, de forma imediata e sempre que verificada a presença de risco atual ou iminente à integridade física ou mental da vítima ou de seus/suas dependentes.
O PLC 07/2016 chegou a conhecimento público em maio de 2016, à luz do relatório favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, encaminhando o projeto para votação. Muitas vozes se levantaram em torno da proposta, tanto para sua defesa quanto para sua crítica, envolvendo delegada(o)s de polícia, representantes do Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário, e o movimento feminista.
Sua apresentação no Senado Federal se fez acompanhada de forte apoio da bancada parlamentar formada por policiais civis e militares, ampliada pela mobilização de policiais civis, sobretudo delegadas de polícia que atuam nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulheres. O principal argumento do grupo de defensoras(es) do PLC 07/2016 é a necessidade de garantir melhor atenção e proteção imediata às mulheres que se encontram em situação de risco. Este é também o argumento que fundamenta o parecer do relator que acolheu o PL 07/2006 no Senado Federal.
O tom uníssono desse discurso foi rapidamente quebrado por outras vozes que, mesmo alinhadas com o interesse em promover a melhor atenção e proteção para as mulheres, passaram a reivindicar espaço na discussão sobre a pertinência da mudança proposta e seus efeitos sobre a Lei Maria da Penha, argumentando pela inconstitucionalidade da proposta – argumento muito forte entre os operadores jurídicos. Em meio aos debates, a tramitação foi suspensa e uma audiência pública foi realizada na qual juntaram-se também posicionamentos de parlamentares e de mulheres vítimas de violência, ocasião em que os embates evidenciaram a necessidade de maior cautela e discussão antes de possível aprovação.
Ao somar-se a esse debate, o movimento feminista trouxe à tona a preocupação com a integralidade do texto legislativo e a fragilização a que a lei estaria exposta a partir de uma mudança substantiva como a que estava sendo proposta. Sobretudo, reivindicou seu lugar de legitimidade para tratar de mudanças à lei cuja existência é um marco histórico das lutas feministas pelo reconhecimento dos direitos das mulheres.
O PL 07/2016, obstáculos e desafios da implementação da Lei Maria da Penha
Existem vários aspectos sobre a PLC 07/2016 e seu impacto sobre a Lei Maria da Penha que poderiam ser discutidos à luz dos avanços, obstáculos e desafios da implementação da lei. Neste texto me detenho sobre os argumentos favoráveis ao artigo, que propõe alterar a atribuição policial para aplicar as medidas protetivas de urgência (artigo 12-B). Colocados como um ponto de luz sobre as dificuldades que as mulheres enfrentam para obter as medidas protetivas, os argumentos apresentados na discussão sobre esse projeto de lei acabaram por iluminar todo o sistema de justiça criminal e a ausência de políticas públicas que deveriam dar efetividade para as medidas protetivas, além de garantir que as outras medidas e ações previstas na lei também possam ser implementadas. Nesse movimento, o foco se deslocou e permitiu refletir sobre as condições de aplicação da LMP e os obstáculos e desafios que estão colocados de forma concreta e rotineira para que as mulheres tenham acesso aos direitos que foram assegurados pela legislação.
O Artigo 12-B traz a possibilidade de as medidas protetivas terem aplicação imediata, no momento do registro de ocorrência por delegadas(os) de polícia, sempre que constatada a situação de risco iminente para a mulher. Caberá à polícia providenciar a imediata intimação do autor da violência, além de acionar outros serviços para atendimento às mulheres. Garantida a proteção inicial, a atividade cartorial segue com a conclusão do procedimento que será encaminhado para o poder judiciário em até 24 horas, desenrolando-se ali os trâmites originalmente previstos na LMP.
A proposta tem motivação inquestionável. Aumentar e garantir a proteção para as mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar é obrigação de todos os agentes públicos que atuam no atendimento a essa população. Se a motivação é inquestionável, a justificativa carece de reflexão. Os debates que se seguiram à publicitação do PLC 07/2016 e a sua defesa colocaram sobre o Poder Judiciário a responsabilidade pelas falhas na aplicação das medidas protetivas. A morosidade na análise e no deferimento dos pedidos e a demora para intimar as mulheres e os autores, em confronto com a urgência de resposta requerida para a situação de violência, foram alguns dos pontos destacados.
A justificativa reflete uma realidade conhecida. A aplicação das medidas protetivas ocorre em contextos bastante adversos, em juizados e varas especializadas sobrecarregados de processos, com trâmites burocráticos inadequados, com quadros reduzidos de pessoal técnico e de cartório. Há que se registrar que existem também dificuldades entre juízes e juízas cujo entendimento da legislação limita-se a aspectos processuais, insensíveis à perspectiva de gênero exigida para a compreensão do contexto de violência doméstica e familiar. Não são poucos os relatos sobre juízes e juízas que exigem que as solicitações de medidas protetivas sejam instruídas com testemunhos e provas periciais, alargando os prazos para produção dos documentos necessários, relegando a segundo plano a palavra da mulher, muitas vezes a única que pode relatar a violência que sofreu e criando dificuldades para que as mulheres consigam acessar a proteção que necessitam, além de promover sua revitimização.
De outra parte, na crítica à atuação policial, encontram-se juízes e juízas que justificam a inviabilidade de análise dos pedidos, alegando que são mal fundamentados e carecem de informações que ajudem na compreensão das medidas solicitadas, inclusive quanto à sua adequação com relação à situação vivida pelas mulheres. Reconhecem as deficiências estruturais de juizados e varas e sabem que este é um limitador importante do trabalho que realizam.
Esses problemas identificados na segurança pública e no Poder Judiciário não ocorrem isolados. Conjuntamente com a ausência de serviços especializados em outros setores da política pública e da formação das redes especializadas de atendimento, é frequente a denúncia da falta de condições para aplicar a Lei Maria da Penha de forma adequada. Vez por outra, esse questionamento é projetado sobre a própria lei, descrita como ineficaz para conter a violência e necessitando de alterações – como ocorre com o PLC 07/2016.
No decorrer destes dez anos, vários diagnósticos foram realizados sobre esse aspecto da implementação da LMP. Desde 2009, o Observatório da Lei Maria da Penha – OBSERVE produziu estudos com o propósito de descrever e analisar as condições de implementação da Lei Maria da Penha. Em 2012, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquéritos foi constituída com o mesmo propósito, além de outros estudos que demonstram o número reduzido de serviços especializados, a concentração nas capitais, as deficiências da articulação em rede, a falta de estrutura física, de recursos materiais e humanos e a inadequação para cumprir com as novas atribuições e funções introduzidas pela LMP. As pesquisas também mostraram a baixa qualificação dos profissionais para atendimento especializado em relação à perspectiva de gênero e a ausência de políticas institucionais que valorizassem o conhecimento especializado e estimulassem os profissionais na sua aplicação.
Considerações finais
Esses diagnósticos mostram, principalmente, a baixa adesão dos Estados e municípios no que tange à implementação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2005). Criada pelo governo federal por meio da Secretaria de Políticas para Mulheres, a Política Nacional funcionou como espinha dorsal de implementação da Lei Maria da Penha e ganhou reforços com o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2007) e o Programa Mulher, Viver sem Violência (2013).
O Pacto Nacional, com suas premissas de capilaridade, intersetorialidade e transversalidade da perspectiva de gênero nas ações do Estado, permitiu ao governo federal atuar por meio do acionamento das responsabilidades previstas no Pacto Federativo Republicano reafirmado na Constituição de 1988. Dessa forma, desde 2007 a SPM implementou uma nova forma de gestão para a transferência de recursos financeiros, técnicos e materiais de forma sistemática e coordenada para garantir as condições mínimas de implementação da LMP.
Na pactuação, os governos estaduais e municipais se comprometeram com investimentos para a manutenção das políticas, dos serviços e programas. Contudo, na prática, para além dos acordos formais, poucas vezes essa sustentação aconteceu de forma continuada. As instituições nem sempre têm se mostrado favoráveis a uma internalização de mudanças proposta pela LMP, tampouco investem na transversalidade de gênero que garantiria a continuidade de mudanças que se iniciam como fruto do esforço individual de alguns profissionais. O resultado é a instabilidade nas respostas oferecidas para as mulheres, afetando diretamente seu acesso às medidas previstas na LMP.
Considerando esse cenário, o PLC 07/2016 perde ainda mais força em sua justificativa, uma vez que sua proposta contribui para mostrar a persistência dessas deficiências, mas não oferece instrumentos para a superação dos obstáculos. Em síntese, o que esse projeto de lei demonstra é uma incompreensão sobre a relevância da integralidade na implementação da LMP e a articulação das medidas previstas em seu texto. Aplicar a LMP parcialmente, ou criar condições que reforçam o desequilíbrio nas medidas propostas, apenas contribui para a manutenção das situações de violência.
Neste ano, mais uma vez as comemorações sobre a LMP refletiram sobre esses avanços e a persistência de obstáculos, mas, talvez mais que nunca, essas reflexões foram balizadas pelas ameaças à integralidade do texto legislativo e de sua aplicabilidade. Isso se deve, por um lado, ao conservadorismo que vem tomando conta de setores da sociedade e das instituições, marcadamente no Legislativo. Por outro lado, relaciona-se com as ameaças à institucionalidade da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, consequência do reposicionamento da Secretaria de Políticas para Mulheres como órgão subordinado ao Ministério da Justiça e da Cidadania.
Em dez anos, há motivos para comemorar. A LMP impulsionou o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra as mulheres como problema público, promoveu significativos deslocamentos na forma de a sociedade ver e pensar sobre a violência doméstica e familiar como resultante da desigualdade de gênero e como violação de direitos humanos. Esses deslocamentos possibilitaram o reconhecimento de outras formas de violência baseada no gênero e que afetam a vida de todas as mulheres e meninas, em todas as etapas de suas vidas, em experiências particularizadas de raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, religião, classe social, procedência regional ou nacionalidade, entre outros grupos sociais a que pertençam.
Esse movimento social ganhou força própria e não tem retorno. Contudo, sua efetividade depende do engajamento e comprometimento das instituições do Estado e da sociedade, e seria ingenuidade pensar que dez anos tenham sido suficientes para romper as lógicas tradicionais de funcionamento das instituições ou alterar a estrutura patriarcal do Estado. Nesse cenário, embora pareça pessimista colocar em primeiro plano os obstáculos e desafios, estes não anulam as conquistas realizadas. Ao contrário, as ameaças indicam que as estruturas tradicionais se ressentem desses movimentos, mudanças e deslocamentos e fortalecem as convicções de que muitas batalhas ainda serão necessárias, mas que os direitos das mulheres não perderão o estatuto conquistado na última década.