Djamila Ribeiro, Revista Sur
É essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e fazer uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista, classista e a hegemonia sexista, bem como refutar e criar uma contra hegemonia. Eu estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa.
Feminism Is For Everybody: passionate Politics. London: Pluto Express, 2000. p. 15.
Essa citação de bell hooks sintetiza a importância do feminismo negro para o debate político. Pensar como as opressões se combinam e entrecruzam, gerando outras formas de opressão, é fundamental para se pensar outras possibilidades de existência. Além disso, o arcabouço teórico-crítico trazido pelo feminismo negro serve como instrumento para se pensar não apenas sobre as próprias mulheres negras, categoria também diversa, mas também sobre o modelo de sociedade que queremos.
Mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria mulher de forma não universal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher. Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, fez, em 1851, seu famoso discurso intitulado “E eu não sou uma mulher?” na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio:
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal e que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também agüentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”
Truth já anunciava ali que a situação da mulher negra era radicalmente diferente da situação da mulher branca. Enquanto àquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas. E essa diferença radical fazia toda a diferença.
Angela Davis também é uma pensadora que, mesmo antes do conceito de interseccionalidade ser cunhado, considerava as opressões estruturais como indissociáveis. Em Mulheres, Raça e Classe, de 1981, recentemente publicado no Brasil, Davis enfatiza a importância de utilizar outros parâmetros para a feminilidade e denuncia o racismo existente no movimento feminista, além de fazer uma análise anti-capitalista, antirracista e anti-sexista.
Apesar de várias feministas negras já se utilizarem de uma análise interseccional antes disso, o conceito só foi cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw, em sua tese de doutorado.
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.
CRENSHAW, Kimberlé Williams. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, n. 10, p. 177, 2002.
Pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que, sendo estas estruturantes, é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, mas sim de modo indissociável.
No Brasil, o feminismo negro começa a ganhar força nos anos 1980. Segundo Núbia Moreira, “a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do III Encontro Feminista Latino-americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. A partir daí, surgem os primeiros Coletivos de Mulheres Negras, época em que aconteceram alguns Encontros Estaduais e Nacionais de mulheres negras”. Surgem organizações importantes como o Geledés, Fala Preta, Criola, além de coletivos e produção intelectual.
Nesse sentido, Lélia Gonzáles surge como um grande nome a ser debatido e estudado. Além de colocar a mulher negra no centro do debate, Lélia vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação”.
A invisibilidade da mulher negra dentro da pauta feminista faz com que essa mulher não tenha seus problemas sequer nomeados.
Dentro dessa lógica, a teoria feminista também acaba incorporando esse discurso e estruturando o discurso das mulheres brancas como dominante. Nesse sentido, contra-discursos e contranarrativas não são importantes somente num sentido epistemológico, mas também no de reivindicação de existência. A invisibilidade da mulher negra dentro da pauta feminista faz com que essa mulher não tenha seus problemas sequer nomeados. E não se pensa saídas emancipatórias para problemas que sequer foram ditos. A ausência também é ideologia.
Muitas feministas negras pautam a questão da quebra do silêncio como primordial para a sobrevivência das mulheres negras. Angela Davis, Audre Lorde, Alice Walker, em suas obras, abordam a importância do falar. “O silêncio não vai te proteger”, diz Lorde. “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”, diz Walker. “A unidade negra foi construída em cima do silêncio da mulher negra”, diz Davis. As autoras estão falando sobre a necessidade de não se calar sobre opressões como forma de manter uma suposta unidade entre grupos oprimidos, ou seja, alertam para a importância de que ser oprimido não pode ser utilizado como desculpa para legitimar a opressão.
A questão do silêncio também pode ser estendida para um silêncio epistemológico e de prática política dentro do movimento feminista. O silêncio em relação à realidade das mulheres negras não a coloca como sujeitos políticos. Um silêncio que, por exemplo, faz com que nos últimos 10 anos tenha diminuído o assassinato de mulheres brancas em quase 10% e aumentado em quase 55% o de mulheres negras, segundo o Mapa da Violência de 2015. A falta de um olhar étnico-racial para políticas de enfrentamento a violência contra a mulher. A combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade permite uma verdadeira prática que não negue identidades em detrimentos de outras.
Por não serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. (…) Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.
KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Munster: Unrast, 2012. p. 124.
Nessa afirmação de Kilomba percebemos que ela discorda da categorização feita por Simone de Beauvoir. Para a filósofa francesa, não há reciprocidade: a mulher sempre é vista pelo olhar do homem num lugar de subordinação, como o outro absoluto. Mas essa afirmação de Beauvoir diz respeito a um modo de ser mulher – no caso, mulher branca. Kilomba, além de sofisticar a análise, inclui a mulher negra em seu comparativo. Para ela, existe reciprocidade entre mulher branca e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um status oscilante que pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito.
Mas Kilomba rejeita a fixidez desse status. Mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos em dados momentos, assim como o homem negro. Beauvoir diz : “Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição de Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.” Kilomba, além de mostrar que mulheres possuem situações diferentes, rompe com a universalidade em relação aos homens também mostrando que a realidade dos homens brancos não é a mesma da dos homens negros, que também em relação a esses deve-se fazer a pergunta: de quais homens estamos falando? Reconhecer o status de mulheres brancas e homens negros como oscilante nos possibilita enxergar as especificidades e romper com a invisibilidade da realidade das mulheres negras.
Para Kilomba, ser essa antítese de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como sujeito. Para usar os termos de Beauvoir, seria a mulher negra, então, o outro absoluto. Tanto o olhar de homens brancos quanto o de negros e quanto o das mulheres brancas confinaria a mulher negra a u local de subalternidade muito mais difícil de ser ultrapassado.
Numa sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista, cada vez mais torna-se necessário o aporte teórico e prático que o feminismo negro traz para pensarmos um novo marco civilizatório.