Paulo César Carbonari, Doutor em filosofia e militante de direitos humanos
Estou extasiado depois de ler a nova Carta Encíclica de Francisco. A entendi como uma Carta que também fecunda os direitos humanos. Se Laudato sí foi dedicada à ecologia, “Fratelli Tutti” também é dedicada aos direitos humanos. Na tradução para o português se pode contar a quantidade de vezes que há referência ao tema e se pode notar que a expressão direitos, direitos humanos, direitos fundamentais, aparece em 52 dos 287 parágrafos da Carta, o que equivale a 18,12% deles – em 15 parágrafos há menção expressa do termo “direitos humanos”. Outra expressão próxima, dignidade, aparece em 43 parágrafos, ou seja, em 15% deles.
A Carta também é uma reabilitação da mediação política como recurso fundamental para a promoção da fraternidade e da amizade social. O objeto da Carta é a promoção da fraternidade e da amizade social, mas com tanta referência aos direitos humanos fica expresso que esta finalidade de fundo não será alcançada sem que estes estejam na centralidade. Estes temas são o que chama de “novo sonho”, “que não se limite a palavras” (§ 6) e que espera fazer renascer um “anseio mundial” (§ 8) de fraternidade.
Mas o papa identifica “sombras dum mundo fechado” que dificultam a fraternidade. São elas: “sonhos desfeitos em pedaços” (§ 10-12), “fim da consciência histórica” (§ 13-14), “sem um projeto para todos” (§ 15-17), “o descarte mundial” (§ 18-21), e este diretamente relacionado aos direitos humanos que não são “suficientemente universais” (§ 22-24), “conflito e medo” (§ 25-28), “globalização e progresso sem um rumo comum” (§ 29-31), “as pandemias e outros flagelos da história” (§ 32-36), “sem dignidade humana nas fronteiras” (§ 37-41), “a ilusão da comunicação” (§ 42-43), “agressividade despudorada” (§ 44-46), “informação sem sabedoria” (§ 47-50), e “sujeições e autodepreciações” (§ 51-53). Para ele o “pior que uma pandemia” é que o princípio “salve-se quem puder” seja rapidamente traduzido no lema “todos contra todos” (§ 32). Enfim, faz um mapeamento amplo, ainda que certamente não exaustivo, mas que indica os “sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento” (§ 65).
No que diz respeito à sombra da insuficiente universalização dos direitos humanos, Francisco começa dizendo que “de fato, os direitos humanos não são iguais para todos” (§ 22). Depois de retomar a premissa de que os direitos humanos são “condição preliminar” do progresso econômico e social de um país e que se os direitos forem reconhecidos e garantidos “florescem também a criatividade e a audácia”, alerta que observa “numerosas contradições” nas sociedades contemporâneas que levam a perguntar se a “igual dignidade de todos os seres humanos” é mesmo “reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias”. Afirma que persistem “inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem”. A contradição se expressa em que, “enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados” (§ 22).
Francisco também observa que “a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens” (§ 23). Segundo ele, ainda que as palavras digam uma coisa, “as decisões e a realidade gritam outra”. Alerta para o que chama de “duplamente pobres” as mulheres que além da exclusão sofrem violência (§ 23). A Carta também alerta para as práticas de tráfico humano, que assemelha às práticas de escravidão. Diz: o fato de que “ainda hoje milhões de pessoas […] são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura”. Afirma que, na raiz destas práticas, está “uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto”. Denuncia as “redes criminosas” responsáveis pelo que chama de “aberração não tem limites”. Enfim, para ele, o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravidão são “problema mundial”. Ele “precisa de ser tomado a sério pela humanidade no seu conjunto”, num “esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade” (§ 24). Note-se que, ainda que tenha enfatizado outros problemas que também poderiam ser caracterizados como de graves violações de direitos humanos, como os que ocorrem em consequência do racismo, da xenofobia e de outras práticas desumanas, não os citou neste item da Carta.
Francisco alerta para “equívocos” resultantes de “um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos”. Localiza estes problemas na “tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais – sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma concepção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma ‘mônada’ (monás) cada vez mais insensível”. Afirma que esta compreensão é “fonte de conflito e violência” (§ 111).
Depois de dizer que “o direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados” (§ 120) afirma que “o direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois ‘quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todo’” (§ 122). Ou seja, “o desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar «os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos” (§ 122). E com isso dá uma das suas principais posições que já tem irritado neoliberais de plantão, exatamente por afirmar a primariedade do destino universal dos bens em detrimento de sua apropriação privada. Reforça com isso os direitos como bens comuns e não como recursos privados apropriados individualisticamente.
Ora, se “viver indiferentes à dor não é uma opção possível” (§ 68), então a pergunta é como viver? E vem a primeira resposta: “de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade” (§ 68). Em nome da dignidade que nos faz humanos é que há uma responsabilidade com o/a outro/a que sofre e esta é a principal responsabilidade de direitos humanos. Esta é uma responsabilidade dos Estados, mas é também das organizações mundiais que, segundo ele, deveriam ser “mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais” (§ 172). Ele também fala da responsabilidade das empresas e de empresários. Enfatiza a responsabilidade das organizações da sociedade civil e particularmente dos movimentos sociais populares, que “realizam esforços admiráveis com o pensamento no bem comum, e alguns dos seus membros chegam a cumprir gestos verdadeiramente heroicos que mostram de quanta bondade ainda é capaz a nossa humanidade” (§ 175).
Este conjunto de observações querem nos aproximar para tomar conhecimento, refletir e discutir este importante documento que, na luta por direitos humanos, pode se constituir num importante subsídio para alimentar e fecundar a organização e a resistência. Não há exigência de profissão de fé. O que seu autor nos pede é “boa vontade” e disposição para engajar-se num processo novo e alternativo de realização da solidariedade e da amizade social.