As causas socioeconômicas e políticas de não realização da reforma agrária no Brasil têm merecido estudos críticos de muitas/os brasileiras/ os, identificadas/os com a necessidade inadiável desse tipo de intervenção pública no território do país. Historiadores como Raymundo Faoro, autor de “Os donos do poder”, agraristas como Plinio de Arruda Sampaio, juristas como Dalmo Dallari e Carlos Frederico Marés (o autor de “A função social da terra”), geógrafas/os e professoras/ es como Bernardo Mançano Fernandes, agrônomos como Enio Guterres (que escreveu “Agroecologia Militante”), lideranças históricas de agricultoras/ es sem-terra como João Pedro Stedile, entidades defensoras do direito de acesso à terra como a ABRA, movimentos populares como o MST, o MAB, o MPA e o MMC, pastorais como a CPT, autoridades das Igrejas como Dom Tomas Balduino e Pedro Casaldaliga, centrais sindicais como a CONTAG, assessorias jurídicas populares, como a Rede nacional de advogados e advogadas populares (Renaap), entre muitos outros coletivos dedicados a defesa da terra, da natureza, do meio- -ambiente, do povo pobre quilombola e índio, como o CIMI, dão testemunho em estudos e ações, da necessidade, da urgência, da conveniência e da oportunidade de se efetivar essa reforma.
As poderosas forças contrárias a todo esse apoio humano de alcançar um chão de convivência fraterna, um lugar onde se garanta para toda a população sem terra o bem estar social e individual, têm oferecido resistência capaz de prorrogar essa conquista indefinidamente. Se o INCRA já enfrentava grandes dificuldades para ajuizar desapropriações de terra, com base na lei 4504 de 1964 (Estatuto da Terra), isso não melhorou com a Constituição Federal de 1988, cuja redação original sobre reforma agrária (artigos 184 a 191) sofreu um verdadeiro golpe, patrocinado, pelo chamado “centrão”, instalado no Congresso Nacional da época, disposto a impedi-la.
José Gomes da Silva, um conhecido engenheiro agrônomo, historicamente identificado com a causa da reforma agrária, fez prova disso num dos seus escritos sobre a matéria (“O buraco negro. A reforma agrária na constituinte de 1987//88”, São Paulo: Paz e terra, 1989, p. 84 e seguintes). Com farta documentação reunida durante a assembleia constituinte de 1988, atestando repetidas artimanhas utilizadas pelo poder latifundiário para barrar qualquer tentativa de ameaçar os seus privilégios, José Gomes conta como deputados favoráveis a redação original do que deveria ser a reforma agrária, no capítulo a ela reservado no projeto de Constituição, quase foram impedidos a força de comparecerem à sessão que o votaria. Um deles, Benedicto Monteiro, suspeita-se até de ter sido retido coativamente para chegar atrasado no ato, assim assegurada a redação que a Constituição tem atualmente, um mero arremedo do que o Estatuto da Terra já consagrara.
Não considerando suficiente todo o poder desse golpe desferido legalmente contra o direito de acesso à terra, o Congresso Nacional votou a lei 8629 de 1993, inserindo, entre muitas terras excluídas da possibilidade de serem desapropriadas para fins de reforma agrária, um parágrafo 6º ao seu artigo 2º, com a seguinte redação, introduzida pela Medida Provisória 2183 de 2001: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.”
Quem acompanha a tramitação de processos judiciais de desapropriação, mesmo com a lerdeza acentuada pela chicana e pelos muitos recursos que a lei processual faculta aos proprietários de terras rurais, sabe quantas dessas desapropriações conseguiram chegar a juízo justamente por terem sido antecedidas de ocupações de multidões de sem-terra que provaram serem elas exploradas sem função social.
Quem pensa, então, a lei constituir-se pura expressão da vontade do povo “soberano”, representado nos Poderes Públicos do Estado, deveria abandonar qualquer ingenuidade sobre como os poderes econômicos ocultos moldam a sua letra e garantem o seu “espírito”. Tudo de acordo com um modelo de interpretação jurídica preso a pura técnica, alheia o suficiente da realidade dura do povo pobre sem terra. Assim não se permite qualquer mudança na distribuição e partilha de um bem como esse, cuja função social, por ele ser indispensável a própria vida de todas as pessoas e não só das suas proprietárias, nem precisaria ser expressa em lei.
O que aconteceu em 1988, na discussão e votação do capítulo da Constituição Federal reservado a reforma agrária, está acontecendo agora com força bem superior e efeitos mais perversos ainda. Um estudo do professor Guilherme Costa Delgado, publicado recentemente no Correio da cidadania, disponível na internet, tem por título “Mercado de Terras Brasileiro: ‘Sem Fronteiras’ e com Muita Grilagem é Oferecido ao Capital Estrangeiro pelos Ruralistas.” Ele examina dados recentes do Cadastro Rural do Incra demonstrativos de um verdadeiro caos ali presente, originado – e isso é bom sublinhar-se aqui – nas informações prestadas àquela autarquia pelos próprios titulares de propriedade e posse de imóveis rurais do Brasil.
Entre final de 2003 e final de 2014, de acordo com o tal cadastro, mostra esse professor que “novos potenciais detentores de propriedades privadas sobre o território nacional – vai de 418,48 milhões de hectares em 2003 para 740,40 milhões em 2014. Isto corresponde a um incremento físico de 76,9 % em onze anos ou um acréscimo de pouco mais de 320 milhões de hectares de terras, que estavam fora do mercado e que nele ingressam por obra mágica da auto declaração de pretensos proprietários ao Cadastro de Imóveis.”
Guilherme convida então suas/seus leitoras/es a observar o seguinte: “740,0 milhões de hectares de imóveis rurais corresponde a 87% do território nacional total (851,4) milhões de hectares. Mas o IBGE define no seu Censo Agropecuário de 2006 uma marcação territorial, que absolutamente não se compraz com esse dado autodeclaratório. As Reservas Indígenas demarcadas e amparadas pelo Art. 231 da Constituição Federal são de 14,74% (125,54 milhões de hectares); Os Parques e Reservas Naturais, amparados pelo Art. 226 da Constituição Federal são de 8,47% (72,1 milhões de ha) e as terras públicas com ‘Outras Titularidades” ´”Zonas de fronteira”, ‘Terrenos de marinha” ‘Terra Devoluta’ etc (Art. 20 da Constituição Federal) correspondem, segundo o levantamento do IBGE a 36,2% do território. Somando a terra pública amparada pelos regimes fundiários constitucionais citados, temos 59,45% do território nacional, que, portanto, está fora do mercado de terras, segundo o conceito constitucional de domínio público. Mas se somarmos as terras públicas, medidas pelo IBGE com as terras autodeclaradas ao INCRA como ‘imóveis rurais’, teríamos o absurdo de um território 46% maior que o território nacional. A explicação para esse absurdo lógico formal, o leitor já pode suspeitar – gigantesca grilagem, seguida de sucessivas operações de ‘legalização’.
A um absurdo como esse, devem ser somados três outros, além dessa “gigantesca grilagem”, também denunciados no mesmo estudo: a lei 13.178 de outubro de 2015, que prorroga por 10 anos as concessões de terras públicas de fronteira, desrespeitando o destino preferencial das mesmas para a reforma agrária, conforme determina o artigo 188 da Constituição Federal; o sucateamento do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) pelo Poder Executivo da União, transferindo toda a sua competência para a Casa Civil da República; o projeto de lei 4059/2012, com tramitação retomada em 2015, o qual, pretendendo regulamentar o artigo 190 da Constituição Federal, facilita a aquisição de terras brasileiras por estrangeiros, ampliando desmesuradamente a fragilidade da pouca “soberania” que nos resta sobre a nossa própria terra.
Com toda a aparência de legalidade, portanto, está aumentando no Brasil uma usurpação pirata de terras indispensáveis a quem tem direito de acesso a ela, por uma reforma agrária cujo poder de realização tende a ficar ainda mais enfraquecido com todas essas iniciativas de rapina.
Durante a 40ª romaria da terra, a ser realizada na Fazenda Annoni em 28 de fevereiro de 2017, abre-se a oportunidade de, como vem acontecendo desde 1986, os cânticos e as orações do povo cristão gaúcho ao Deus da vida vão manifestar-lhe a perseverante convicção de que o Seu povo não aceita um destino como esse, que os novos faraós pretendem dar a nossa terra, condenada a ser explorada como reles mercadoria. A terra não pode ser lugar de um povo escravo, impedido de ser tratada como mãe, generosa em semente fecunda, plantada sem veneno, limpa em suas águas, ar e florestas, garantindo abrigo e alimento saudáveis para todas as suas filhas e filhos, na ventura de verem cumprida a promessa do Senhor: “Eu Vim para que todas/os tenham vida e vida em abundância”.
Texto de Jacques Távora Alfonsin.
Fonte: Voz da Terra, Informativo da CPT, RS, novembro de 2016.