MISERICÓRDIA E CUIDADO: o legado de Francisco, o Papa

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Paulo César Carbonari*

A primeira notícia que li na segunda feira de páscoa foi uma daquelas que, ainda soubesse que viria, não queria tê-la recebido: a morte de Francisco, o papa. Tristeza foi o que brotou. Ao longo do dia, pensando no significado daquele acontecimento e do meu sentimento, gradativamente brotou outro em seu lugar: agradecimento. Aquele que nos deixava, na verdade, passava a ser legado e nos chamava ao seguimento e a testemunhar seus ensinamentos. Passei, então a buscar, entre os muitos que fez aflorar, os que levaria como centrais: a misericórdia e o cuidado.

Francisco foi um incansável agente destas práticas, que também são posições ético-políticas. Num mundo no qual vigora a “pedagogia da crueldade”, a concentração de coisas, a destruição do comum, a “globalização da indiferença”, a “cultura do descarte” e a sobrevalorização do “esterco do diabo”, como ele mesmo chamou o dinheiro, lembrando a Basílio de Cesareia, suas palavras e sua vida aparecem como aquela luz, própria de “homens em tempos sombrios”, como chamou Hannah Arendt.

No encontro que fez com movimentos sociais populares, em Santa Cruz (Bolívia, julho de 2015), Francisco declarou: “O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança. Estou convosco. E cada um, repitamos a nós mesmos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra”.[1]

Finalmente, na declaração Dignitas infinita (2024)[2], diz “Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no próprio ser de cada humano, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre. […] fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos […]” (DI, 1). Distingue quatro dimensões no conceito de dignidade: dignidade ontológicadignidade moraldignidade social e dignidade existencial (DI, 7-9) e afirma expressamente que: “desta dignidade ontológica e do valor único e eminente de cada mulher e de cada homem que existem neste mundo fez-se eco a Declaração universal dos direitos humanos (10 de dezembro de 1948) por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas” (DI, 2).


* Doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), associado da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF).

[1] Ver o discurso completo em www.cnbb.org.br/confira-a-integra-do-discurso-do-papa-francisco-no-encontro-mundial-dos-movimentos-populares/

[2] Ver documento completo em www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_doc_20240402_dignitas

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