Texto de Paulo César Carbonari, doutor em filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos (CDHPF/MNDH).
A situação vivida em consequência da pandemia Covid-19 mostra uma redução clara da atividade em boa parte do mundo, particularmente nas economias mais centrais. Isso tem consequências múltiplas que vão muito além da redução do PIB prevista que, na melhor das hipóteses, será altíssima para a maioria das economias, ainda que não seja igual para todos/as. Por outro lado, esta parada indica que é possível desacelerar, ainda que com impacto significativo, contrariando o que, até há alguns dias, era dito como impossível para a maioria dos agentes econômicos do capitalismo avançado. Claro que nem todos/as perdem o mesmo tanto e há muitos/as que estão ganhando neste momento, inclusive com aquilo que de fato é a guerra (aquela comercial, entre produtores de material de proteção e os que deles necessitam que têm e os que não tem dinheiro para sabotar, digo comprar).
Mas, será que a situação atual, se quisermos que a margem a que viermos a chegar depois desta invernal travessia seja razoavelmente mais humanizada, não requer que não seja suficiente desacelerar e até mesmo nem frear, mas sim pensar modos de parar o sistema? Seria o acontecimento do Coronavirus/Covid-19 um freio, um freio duro, daquele que produz uma parada duradoura, ao progresso necrófilo que levou a esta situação? Ou, dito de outra forma, seria este acontecimento suficiente para ter uma carga transformadora? Se sim, em que sentidos?
Sou dos que tendem a defender, por acreditar na possibilidade de uma margem mais humanizada e pós-capitalista, em potência, em construção na travessia, que não basta desacelerar nem frear… é preciso parar! E não basta um “freio de arrumação” ou uma “parada estratégica”. No fundo do debate está a necessidade de crítica radical à noção de progresso produzida pela modernidade e o potencial transformador que esta critica pode carregar.
Enrique Dussel, em artigo publicado nestes dias, orientado por Benjamin afirma: “teríamos que aplicar o freio e não o acelerador necrófilo que leva em direção ao abismo”. Num desenho bem radical e propositivo, defende que a interpelação da natureza: “ou me respeitas ou te aniquilo!”: “manifesta-se como um signo do fim da modernidade e como anúncio de uma nova Idade do Mundo, posterior a esta soberba civilização moderna que que tornou suicida”. Diz acreditar que “estamos vivendo pela primeira vez na história do cosmos, da humanidade, sinais de esgotamento da modernidade coo última etapa do antropoceno e que permite vislumbrar uma nova Idade do Mundo, a transmodernidade”. Para ele, neste novo momento “deve-se antes de tudo afirmar a Vida sobre o capital, sobre o colonialismo, sobre o patriarcalismo e sobre muitas outras limitações que destrói as condições universais da reprodução da Vida na Terra. Isto deveria ser conquistado pacientemente no longo prazo no século XXI que só estamos começando”.
Outro importante filósofo se pronunciou numa linha muito parecida, Bruno Latour defendeu que: “É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve também para nós. Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso – “Retomemos a produção o mais rápido possível”- temos de responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.
Para nos ajudar a refletir, na perspectiva de abrir alternativas para chegar a uma margem mais humanizada, buscamos subsídios em dois pensadores do materialismo histórico: Walter Benjamin e Luis Carlos Mariátegui. Recuperaremos breves passagens de suas posições críticas ao progresso.
Walter Benjamin é o filósofo contemporâneo cuja crítica ao progresso aparece com ênfase, tal que seu desejo é o de produzir um materialismo histórico capaz de aniquilá-lo. Assim se pronunciou nas Passagens Parisienses: “Podemos considerar também como finalidade seguida metodologicamente neste trabalho a possiblidade de um materialismo histórico que tenha aniquilado (annikiliert) em si mesmo a ideia de progresso” (apud Löwy, 2002, p. 202). Nas suas teses Sobre o Conceito de História (1940) usa uma figura plástica, já bastante conhecida do angelus novus para representar o progresso como uma catástrofe que acumula ruinas e vítimas. Descrito na nona das Teses de Benjamin (2005, p. 87, para todas as referências seguintes), o “anjo da história” é aquele que quer redimir o acúmulo incansável de “ruína sobre ruína”, de “catástrofes”, que vitimaram os/as oprimidos/as, fazendo frente à tempestade do progresso. Contra a história como cortejo triunfal, quer que ela seja lida a contrapelo, exatamente dede suas vítimas. O combate ao positivismo naturalizador e normalizador do progresso é fundamental. Afinal, impelido pelo progresso, que é uma “tempestade”, o “anjo da história” não tem como evitar que a barbárie siga vitimando. Mas, o progresso linear, produtor de vítimas, não é “natural”, por isso não é nem inevitável e nem irresistível.
Benjamin entende que a revolução haverá de ser a interrupção, não a promoção, do progresso. Diz: “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (Benjamin, Ms 1100, apud Löwy, 2005, p. 93-94).
Nas Teses Benjamim apresenta sua oposição ao progresso na ideia de catástrofe. Aquilo que é progresso para uns, os vencedores, é catástrofe para outros, os/as vencidos/as. Nas anotações preparatórias para as Teses, escrevia: “a catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe como o continuum da história” (Benjamin, Ms 481, 2011, p. 412). Segundo ele: “O curso da história como se apresenta sob o conceito de catástrofe não pode dar ao pensador mais ocupação que o caleidoscópio nas mãos de uma criança, para a qual, a cada giro, toda ordenação sucumbe ante uma nova ordem. Essa imagem tem uma bem fundada razão de ser. Os conceitos dos dominantes foram sempre o espelho graças ao qual se realizava a imagem de uma ‘ordem’ – o caleidoscópio deve ser despedaçado” (Benjamin, 1989, p. 154).
No dizer de Reyes Mate, um dos estudiosos do pensamento de Bejamim: “O grave dessa visão progressista da história não é tanto o fato de produzir vítimas, mas de justificá-las e, portanto, tornar a produzi-las indefinidamente. Frente à ideia propagandística de que o progresso processa seus próprios custos até reintegrá-los nos benefícios gerais do movimento histórico, está a denúncia benjaminiana de que essa lógica é a de um tempo contínuo homogêneo que não admite interrupção nem olhada ao passado” (Mate, 2011, p. 51).
Na ideia de progresso está uma compreensão de tempo homogêneo, vazio, mecânico e que leva a uma abordagem linear e meramente quantitativa dos processos. Tudo é entendido como automático, contínuo, infinito, cumulativo, de forma a garantir que as forças produtivas se desenvolvam em domínio aberto da natureza, sem tomar em conta as contradições [entre elas aquelas que são resultantes das relações de produção], ou mesmo, passando por cima delas.
Benjamin pretende mostrar que “a história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele tempo que é saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit)” (Teses, XIV, 2005, p. 119). Ou seja, construirá uma outra concepção de tempo histórico (revolucionário, messiânico) capaz de perceber o progresso, mas também as regressões, sobretudo para fazer ressaltar a centralidade dos oprimidos que somente podem ser percebidos se forem notadas e apontadas as regressões, das quais eles fazem parte, como vítimas.
A barbárie não é coisa do passado, nem mesmo do passado distante, é atualidade que se manifesta na opressão; da mesma forma, a resistência a ela: não é coisa do passado, mas continua presente nas lutas dos oprimidos. E mais, no dizer célebre do próprio Benjamin: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (Teses, VII, 2005, p. 70).
José Carlos Mariátegui, filósofo peruano, formula uma crítica ao progresso desde um materialismo matizado pelas cosmovisões indígenas peruanas, no ensaio “Dos concepciones de la vida!” (1925), no entre guerras, faz uma crítica ao “culto supersticioso do progresso”.
No texto de 1925, escrito no entre-guerras, diz que “o que diferencia aos homens desta época não é tão somente a doutrina, mas sobretudo o sentimento”. As duas concepções que se opõem são os conceitos de vida pré é pós bélico, “conflito central das crises contemporâneas”. Segundo ele, ambos foram unificados pela filosofia evolucionista, historicista e racionalista que unificava, por sobre as fronteiras políticas e sociais e as classes antagônicas.
Em suma, segundo ele, entendia-se que “o bem-estar material, a potência física das urbes, tinham engendrado um respeito supersticioso pela ideia de progresso. A humanidade parecia ter encontrado uma via definitiva”. É enfático ao dizer que “conservadores e revolucionários aceitavam praticamente as consequências da tese evolucionista. Uns e outros coincidiam na adesão à ideia de progresso e também na aversão à violência”.
Em “Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana” (1928), mostra como a conquista colonial “destruiu e desorganizou a economia agrária inca, sem ser substituída por uma forma superior”, deixando de objetivamente significar progresso. E também dirá enfaticamente que “A Ciência, a Razão e o Progresso foram os mitos do século dezenove”. Aquilo que havia sido projetado para superar o mito, torna-se mito.
Note-se que a posição de Mariátegui e de Benjamin, como se pode notar, não segue os estandares “normalizados” que apostam no transcurso linear da história segundo o roteiro do progresso inexorável e sobre-humano. Não advogam, portanto, um futuro como retorno à normalidade, como se a normalidade fosse o melhor dos mundos possíveis.
O que estamos propondo não pode ser entendido como uma postura que não se responsabiliza com os milhões de trabalhadoras e trabalhadores que estão perdendo seu trabalho e seu meio de vida com esta pandemia. O fato é que assim como estes há milhões que já estavam na informalidade, no trabalho intermitente ou em muitas formas precarizadas de trabalho. O capitalismo de hoje é o mesmo de sempre que explora as trabalhadoras e trabalhadores. Propor um freio a este sistema é buscar alternativas de vida nas quais as trabalhadoras e os trabalhadores possam ser os sujeitos do processo e não aqueles/as que são produtores de valor, sem ter acesso a ele.
O desafio de parar a “locomotiva necrófila” do capitalismo predatório da vida em todas as suas manifestações. Superar estas perspectivas é o desejo de quem já não quer que a margem a que se venha a chegar seja nada mais do que “mais do mesmo”. Toda esta vivência haverá de se transformar em profunda experiência, bem no sentido benjaminiano. Vamos parar o capitalismo necrófilo em nome de cuidar e de preservar a vida. O futuro está aberto. Vamos sem medo dar força às potências transformadoras e transformar esta travessia numa experiência de produção do novo.
Escrita em 06/04/2020
Publicado na conta Facebook do autor em 09/04/2020
Referências
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LATOUR, Bruno. “Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo e à produção insustentável pré-pandemia”. ClimaInfo, 3 de abril de 2020. Disponível em https://climainfo.org.br/2020/04/02/barrar-producao-insustentavel-e-onsumismo/. Acesso em 03/04/2020.
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