Necropolítica e necrofilia em estado puro: pensamentos indignados e para mobilizar a indignação

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A ação de um governante pode ser no sentido de promover a vida, a sua produção, reprodução e desenvolvimento, ou sua destruição, senão para todos/as, para determinados grupos humanos que, por algum motivo, considera inimigos, converte a política em necropolítica e se orienta por uma posição que se pode chamar de necrofilia. O pronunciamento em cadeia nacional do mandatário do Brasil (em 24/03/2020) e suas várias e reiteradas posições no enfrentamento do Covid-19 são expressão de necropolítica e de necrofilia em estado puro. O agir em favor da destruição da vida e da promoção da morte transforma a política em guerra por outros meios, em necropolítica e a vida em amor à morte, em necrofilia.

A promoção da morte se constitui em prática cruel que desampara. Num jogo de (i)responsabilidade mortífera, anima a autodestruição e a destruição alheia. É o contrário do que se esperaria razoável, saudável. Mas há uma racionalidade nesta prática, uma racionalidade mortífera, uma versão ainda mais cruel da racionalidade vitimária.

O raciocínio destes senhores é simplesmente incrível: haverá mortes, serão do grupo dos mais vulneráveis, não teremos como evita-las, a maioria não é de grupo de risco, logo voltemos ao trabalho (não à vida, pois a ela nem todos/as voltarão!) normal, afinal, é necessário evitar o estrago econômico (perder lucros). Isto tudo com uma boa dose de maldade adicionada: faça-se tudo isso para proteger pois entre morrer de vírus e morrer de fome, a quem haverá de morrer, melhor que morra de vírus, já que assim não vai comprometer quem seguir vivo e sem fome por ter acumulado ainda mais (os que assim pensam acreditam haver leitos de CTI e respiradores mecânicos disponíveis exclusivamente para eles, e os há!).

Há um “gabinete do ódio” em ação no qual e pelo qual a máquina necropolítica é alimentada. Ela é turbinada pela (realmente) fantasiosa “guerra cultural” na qual sempre é necessário identificar um inimigo e a todo o momento manter as milícias reais e digitais a postos e em ação para enfrentar e eliminar este inimigo. É isso que mantém de pé a possibilidade de seguir governando. Não basta negar a realidade, a ciência, o bom senso, é preciso mobilizar o “exército” para atacar o inimigo, imprensa e governadores. Noutro momento foram outros inimigos, logo mais, futuramente, serão outros!. A lógica da guerra é própria da necropolítica. Assim, não é estranho que se combinem a “guerra cultural” como operação da necropolítica.

Há em tudo isso um conceito de proteção invertido…. não se trata de proteger a quem mais precisa, trata-se de se proteger de quem mais precisa. Critica-se os outros por serem insensíveis, mas sua sensibilidade é profundamente seletiva. Se quisermos falar em proteção da vida e da saúde precisamos trabalhar com políticas de promoção da vida, da vida em abundância, para todos/as, ainda que no meio da mais terrível dinâmica de morte. Não há como tergiversar ou ceder, por pouco que seja, a qualquer tipo de seletivismo, que sempre trabalha na transformação de privilégios em direitos, desmontando todos os direitos.

A prioridade para aqueles e aquelas em situação de maior vulnerabilização, que têm suas vidas ainda mais precarizadas pela desigualdade, a pobreza, a opressão e a exploração não é sinônimo de privilegiar. Pelo contrário, é sinônimo de proteção no mais profundo sentido. E proteção exige um diagnóstico da situação, identificar aos quem (em geral os “ninguéns” para o status quo) se deve dirigir a prioridade da proteção. O discurso do “lave as mãos” não pode ser abstrato (tem que vir acompanhado de água potável e material de higiene e limpeza – coisa rara para moradores em situação de rua, assentamentos e acampamentos urbanos e rurais, periferias urbanas, assentamentos precários, entre tantos). O “fique em casa” não pode ser retórico, tem que vir acompanhado da existência da casa e da casa com condições de habitação que sejam decentes. O “pare de trabalhar” não pode ser cínico, tem que vir acompanhado de manutenção do salário, de programas de renda básica, de auxílios governamentais, de regularidade no pagamento do INSS e do Bolsa Família (o que inclui atender a todos/as que estão aguardando na fila). Enfim, os cuidados têm que ser integrais, integrados, integradores. Não basta que sejam paliativos, ainda que todos precisem ser urgentes, prontos e continuados.  

A crueldade necropolítica não é nova, é estruturalmente constitutiva do capitalismo (veja que o mandatário se alinha a posição pública de senhores do mercado). Mas na sua versão ultraneoliberal na qual a superexploração da riqueza natural e do trabalho se tornaram imperativo existencial, na qual o modelo da empresa invadiu (ou pretende invadir) toda a sociedade, transformando inclusive os indivíduos em empresários de si mesmos, esta qualidade ganha refinamentos ainda mais terríveis. Sendo cada um empresário de si, o fato de não conseguir se reproduzir economicamente num contexto como o de uma pandemia, resulta em frustração do próprio mérito, em incapacidade de autoproteção, ou pelo reverso, na necessidade da afirmação da capacidade de si mesmo enfrentar a tudo, inclusive essa “gripezinha”, afinal, não dá para parar, não tem como deixar de ganhar dinheiro (e a posição presidencial explora e alimenta estes posicionamentos de modo perverso). Quem não ganha dinheiro não vive. A vida fica secundada ao dinheiro tout court, o dinheiro, o tudo, inclusive a vida, pelo dinheiro, ganha primazia.

A necropolítica e a necrofilia invertem tudo isso em favor unicamente do dinheiro. Há muitos/as que estão gastando seus neurônios e conhecimentos para encontrar oportunidades para seguir ganhando muito dinheiro, inclusive com a pandemia. Em oferecer soluções que são falsas soluções, ou soluções somente para os que já estão “salvos”. Essa é a crueldade mais atroz que vai se instalando nas entranhas do terrível e vai se traduzindo em isolamento anti-solidário que promove a saída de casa, a volta ao trabalho, a reabertura de tudo (comércio, escolas….), no afã de promover cuidado. Como já disse, um cuidado ao avesso que é puro descuidado!

Para quem tece loas à virtude do egoísmo, não há mesmo porque se preocupar com o social, com os outros, com o nós. O eu está sempre acima de tudo e de todos. Todo altruísmo piegas é sinal de fraqueza. Ao modo do atleta, forte e destemido, há que se brandir o próprio ego e colocá-lo na rua, na batalha, contra a covardia. Há uma coragem insana no eu. Ele pode tudo. Não será uma “gripezinha” que haverá de derrubá-lo. Não se pode alimentar a “moral dos escravos”, sempre afeita a vitimoses, a ressentimentos… O egoísmo do eu autoproduzido e produtor de tudo e de todos vencerá… Pensam e agem em favor da morte, dos outros (acreditam).

Ledo engano, parece que este vírus é bem menos seletivo do que os seletivistas gostariam que ele fosse; é ainda menos egoísta do que os adeptos da virtude do egoísmo gostariam; é bem mais tanatófilo do que gostariam que fosse. Ele alimenta práticas necropolíticas… mas também nos avisa que se elas seguirem vigentes não haverá margem à qual se possa chegar depois dessa longa e invernal travessia.



Imagem Capa: JusBrasil
Texto elaborado por Paulo César Carbonari, doutor em Filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos (MNDH e CDHPF). Elaborado em 25 de março de 2020

2 Comentários

  1. Já era hora de alguém falar a verdade da grande farsa politica que estamos vivendo. Parabéns pelo texto de caráter neo-humanista que jorrará muita energia para nossa sociedade rumar pra novas esperanças e novas mudanças, pois a tempo que a “panela de pressão” estar fervendo…

  2. Texto de uma sensibilidade e de uma sensatez sábia, comparado àquele momento das diretas-ja, iniciado por um dos seu arquitectos Uliisses Guimarães, Tancredo Neves e aquilo que se tornou coro nacional, a cançaão “Coração de Estudante” de Miltojn Nascimento. Assim, já era hora de alguém falar a verdade da grande farsa politica que estamos vivendo. Parabéns pelo texto de caráter neo-humanista que jorrará muita energia para nossa sociedade rumar pra novas esperanças e novas mudanças, pois a tempo que a “panela de pressão” estar fervendo…

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