A PEC (proposta de emenda constitucional), encaminhada pela presidência da República em exercício (?!) ao Congresso Nacional, objetivando reformar toda a legislação previdenciária do país, está recebendo manifestações contrárias e críticas muito duras, não só das organizações políticas de trabalhadoras/es, como de especialistas em serviço social e direito previdenciário, prevendo consequências as mais funestas para os direitos sociais das/os brasileiras/os.
Duas publicações recentes, uma assinada pelo professor Guilherme Delgado sob o título – “Aspectos Ético Previdenciários da PEC 287/2016 em Confronto com o texto Constitucional Vigente – (Síntese Expositiva)”, já circulando na internet e outra da professora Amelia Cohn, no último número da revista Le Monde Diplomatique sob o título “Um assassinato cruel”, dedicam-se a analisar em detalhe as modificações propostas pelo governo, de modo a esclarecer qualquer leitora/a sobre o que vai perder com a tal reforma.
Guilherme salienta aspectos pouco lembrados por outras críticas, como o da despreocupação da exposição de motivos da proposta governamental com a legitimidade indispensável a uma iniciativa dessa importância; aponta os “critérios básicos constitucionais restringidos pela PEC 287-2016”, listando os artigos da Constituição vigente que ela vai modificar ou revogar, em prejuízo de direitos, com atenção especial aos titulados pelas/os trabalhadoras/es que vivem sob economia familiar. Faz uma sombria advertência, dando ênfase aos danos que serão suportados por quem, atualmente, recebe pelo menos o BPC (benefício da prestação continuada):
“As regras constitucionais supracitadas de Previdência e Seguridade Social e sua reversão pela PEC, afetam os elos mais frágeis da base social – pessoas extremamente pobres (titulares de direito ao BPC), agricultores familiares (diferenciados em tempos e formas de contribuição) e mulheres em geral, tanto rurais quanto urbanas, diferenciadas pelo critério do menor tempo de trabalho exigido. Todos esses direitos são perdidos. Mas há ainda uma regra capciosa, que se superpõe a essas perdas, agravando-as e afetando ademais todos os outros segurados: o acréscimo em 10 anos do tempo de carência para a aposentadoria por idade e a fórmula de cálculo do valor dos benefícios previdenciários, que reduz em 20 pontos percentuais no mínimo – o valor dos benefícios calculáveis por essa nova regra.”
Tudo leva à convicção de a PEC 287 estar tão confiante na sua aprovação (in)constitucional pelo Congresso, que já nem se preocupa em disfarçar-se com aquela doutrina jurídica, muito ao gosto do capital, que caracteriza os direitos humanos sociais como sujeitos à uma contínua “progressividade”, ou seja, ser suficiente, para sua validade e eficácia, serem previstos em lei, assumindo-se então como “normal” ficarem à espera do cumprimento (“progressivo”) da eterna promessa de que “agora vão”… Pela tal PEC, eles não só não vão como serão obrigados a recuar.
A ilegitimidade e o pouco caso da fundamentação ética da proposta governamental estão à vista. Se, em vez da referida progressividade dos direitos sociais, a PEC 287/2016 respeitasse o princípio constitucional de proibição de todo retrocesso social, inerente a qualquer Estado democrático de direito, ela nem teria sido encaminhada ao Congresso Nacional, pois consagra uma típica previdência imprevidente e anti-social. Está visivelmente interessada em desconstituir direitos próprios justamente das/os brasileiras/os mais dependentes de uma instituição pública cuja principal finalidade é a de existir como proteção e defesa de suas vidas e dignidade. Exatamente como está posto no aviso final do estudo elaborado pelo professor Guilherme Delgado:
“…ao abandonar a discussão do argumento da legitimidade real, buscando apenas a legitimidade formal da PEC, apoiada em ampla e sistemática campanha de desinformação pública, ignora-se todo o acervo de coesão social nacional construída pela Previdência Social ao longo dos últimos 28 anos. Este evidentemente não é caminho para o futuro, porque nasce execrado pela má consciência da produção da desigualdade.
A professora Amelia, por sua vez, faz um histórico da nossa previdência social desde o tempo dos IAPS (Institutos de aposentadoria e pensões), ainda da época da ditadura Vargas, período no qual Getulio tentou unificá-los, hipótese que somente se concretizou depois do golpe de 1964, no que hoje é o INSS. Ela demonstra como as receitas da previdência sempre sofreram desvios das suas finalidades de aplicação dos recursos arrecadados e em prejuízo, por óbvio, da população mais pobre. A defesa da privatização da Previdência, igualmente, nunca abandonou sua intenção de submetê-la às regras permanentemente instáveis do mercado. A sua conclusão não difere da adotada pelo professor Guilherme:
“Além do seu impacto imediato e futuro, a Reforma da Previdência proposta pelo atual governo em nome da austeridade fiscal cobrará um alto preço de toda a sociedade e demandará décadas de reconstrução de tudo o que vem sendo desconstruído na área social, com sucessivas e rápidas penadas. Talvez porque o atual governo, tendo o (caro) apoio do Legislativo e na confusão e embaralhamento dos três poderes possa dispensar a sociedade. E assim, embora institucionalmente democrático, seu autoritarismo tem espaço para criminalizar a sociedade, sobretudo aqueles segmentos que tiveram seu aprendizado na dura luta pela conquista de seus direitos básicos, direitos esses cada vez mais ameaçados.”
Se o governo abandona a sociedade, essa certamente não abandona o país nem a sua capacidade de resistência, aí residindo a esperança de se mobilizar unida contra mais esse golpe praticado por um Estado nem democrático nem de direito.