O Brasil está longe de ser uma democracia racial, como inúmeros fatos demonstraram ao longo de 2017. A demissão do apresentador William Waack, da TV Globo, depois de dizer que uma buzina insistente era  “coisa de preto”, uma festa em que secundaristas se fantasiaram de faxineiras e entregadores de pizza, a fala do ministro Luís Roberto Barroso sobre Joaquim Barbosa ser um “negro de primeira linha”, os novos ataques online sofridos por personalidades como a atriz Taís Araújo, a apresentadora Maria Júlia Coutinho e a Miss Brasil 2017, Monalysa Alcântara, entre outros, ampliaram o debate sobre o tema. Os brancos, porém, pouco discutiram sobre seu papel nessa história.

O que significa ser branco em nossa cultura? Quais acessos, possibilidades e vantagens são garantidos aos brancos em função do racismo? Qual o papel dos brancos no combate ao problema? Em entrevista a The Intercept Brasil, a pesquisadora Lia Vainer Schucman fala sobre hierarquias raciais e a sua relação com os privilégios da branquitude.

“É um processo individual, coletivo e institucional. Depois de reconhecer que há privilégios por conta do racismo, quem quer se opor ao problema tem que fazer uma vigilância constante”, diz Schucman. Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), ela enfatiza que o racismo não pode ser combatido somente com educação. “O racismo é um problema material. A educação ajuda, mas não se combate o racismo sem redistribuição de renda, terra e poder”, afirma a pesquisadora.

 

The Intercept Brasil: O que é a branquitude? Qual a sua relação com o racismo?

Lia Vainer Schucman: Quando falamos em em branquitude, primeiro devemos pensar em contexto. Falar em branquitude pode se referir aos estudos sobre populações brancas, como italianos, alemães, portugueses etc. Mas, no contexto do movimento antirracista, trata-se dos estudos críticos da branquitude. Ou seja: pensar como a branquitude se constrói a partir do racismo. O termo ”branquitude” remete à ideia da identidade racial branca: é quando os brancos começam a ser racializados, tais como negros e indígenas nas sociedades estruturadas pela ideia de raça. 

Olham-se os negros como um grupo racializado, os indígenas como grupo racializado, mas os brancos como indivíduos.

A raça é um conceito construído no século 19 por uma pseudociência que vai dizer que um determinado fenótipo vai ter uma continuidade moral, intelectual, estética. Falar em identidade racial branca é falar que há significados histórico-culturais construídos sobre o fenótipo branco – fenótipo que terá atribuições morais, intelectuais e estéticas que trazem uma ideia de civilização por trás. Esse conceito de raça foi construído com uma ideia fictícia de superioridade: o próprio grupo que inventou o conceito (brancos europeus) hierarquizou e disse que algumas atribuições eram melhores do que outras. Então, os brancos se colocaram em uma posição de superioridade em relação a outros grupos.

Ruth Frankenberg, teórica britânica do tema, diz que a branquitude que é um “lugar confortável, onde você olha os outros através da lente que você não olha a si mesmo”, e esta lente é a raça. Olham-se os negros como um grupo racializado, os indígenas como grupo racializado, mas os brancos como indivíduos. A branquitude é uma racialidade que se compõe desta noção de raça construída no século XIX, mas que não é vista enquanto tal: é vista como neutra. E, além de neutra, ela blinda aos brancos a ideia do que é negativo. Mesmo que os brancos europeus tenham feito a escravização de negros e indígenas, o genocídio dos judeus, a colonização da África e do Oriente, eles aparecem no imaginário como continente civilizatório, enquanto a África aparece como o continente da “barbárie”.

 

TIB Como essa branquitude funciona no Brasil?

LVS Quando pensamos identidade racial branca no Brasil, devemos entender como pensamos identidade, como pensamos raça e quem é considerado branco na sociedade brasileira. Primeiro, é importante lembrar que “identidade” é diferente de “identificações”. A identificação é um percurso individual de um sujeito. Uma pessoa pode ser branca e ter identificações com a capoeira, com o candomblé, com o samba – tidos como sendo da chamada “cultura negra”. A identidade coletiva, não: ela é construída sócio-historicamente e depende da estrutura social em que um indivíduo está inserido.

Então, pensando que no Brasil o racismo é de fenótipo, mesmo que uma pessoa tenha identificações com a chamada “cultura negra”, se sua cor da pele é vista como branca, então ela é branca. Ou seja: é o fenótipo que vai dizer quem é branco e quem não é. Vale dizer que na região Sul é um pouco diferente: a branquitude se dá não só pelo fenótipo, mas também pela origem étnica dos indivíduos. Feita essa ressalva, podemos falar que, de modo geral, os brancos no Brasil são considerados a partir do fenótipo. Então, a identidade racial aqui é esse olhar sócio-histórico construído pelo fenótipo. Essa identidade não é fluida como podemos pensar, às vezes, sobre o gênero e outras classificações. A identidade é mais fixa quando falamos de raça, no sentido de que a classificação acontece logo, pelo olhar.

Mesmo sendo um conceito que não existe biologicamente, esta ideia da raça branca como superior, construída no século XIX, foi apropriada pelos sujeitos e está em tudo no Brasil hoje.

Um negro sempre está carregando a raça, é sempre representante dos negros, enquanto um branco é representante dele mesmo.

TIB Em que situações do cotidiano se vê essa branquitude?

LVS Quando as pessoas falam que o cabelo liso é superior, mais bonito do que outros, ou quando elas elogiam “traços finos”, elas usam este conceito de raça para falar que há uma superioridade estética de um grupo sobre outro. Já vi criança de três anos de idade dizendo que acha o olho azul “o mais bonito”. De onde ela tira isso? Da mídia, das propagandas, da escola, onde professores falam para as crianças com esse fenótipo que os olhos azuis são lindos. A gente acha uma coisa pequena, mas essa pessoa com olho azul cresce com uma auto-estima muito maior do que outras que crescem ouvindo que o seu cabelo “é difícil de pentear”. Outro exemplo é quando alguém pergunta a uma pessoa negra brasileira o que ela acha do Barack Obama. Se alguém pergunta a um branco brasileiro o que ele acha do Donald Trump, associando que aquele branco (Trump) tem alguma representatividade das pessoas brancas, a pessoa vai falar que é uma generalização e vai perguntar o que ela tem a ver com o Trump. Um negro sempre está carregando a raça, é sempre representante dos negros, enquanto um branco é representante dele mesmo.

Se você pensa que a raça pode ser fluida, você pensa que as pessoas podem escolher a raça. Mas elas não podem.

Você disse que a identidade racial não é tão fluida como sexualidade e identidades de gênero. No fim de Maio, a revista feminista dos EUA Hypathia publicou um artigo de que defendia a ideia de uma “identidade transracial”. No artigo, a autora defende que os argumentos que amparam a identidade transgênero deveriam amparar a possibilidade de uma identidade ”transracial”.

Não existe essa categoria transr-racial, que pode partir da escolha dos sujeitos. Se você pensa que a raça pode ser fluida, você pensa que as pessoas podem escolher a raça. Mas elas não podem. Falando de sociedades estruturadas pelo racismo, uma pessoa negra não pode acordar um dia e falar que não é negra porque se identifica com Mozart, gosta de ouvir música clássica, estuda filosofia alemã e tem referências europeias. Não existe essa possibilidade porque a gente está em uma sociedade estruturada pelo racismo de tal forma que a polícia vai parar essa pessoa, ela vai sofrer mais batidas policiais, por exemplo.

Pessoas negras não têm o direito de se desracializar. Já as brancas podem zoar com isso, brincar com essa racialidade o tempo todo sem problemas. Isso é um privilégio da branquitude.

No início da minha tese de doutorado (“Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”), relato que fui a uma festa e perguntei a pessoas brancas qual era a raça delas. As pessoas iam respondendo “pitbull”, um outro falou “marciano”. Somente uma pessoa se declarou branca. Se um negro falar que a raça dele é “marciano”, vão falar que ele não quer admitir ou que está negando a própria raça. Pessoas negras não têm o direito de se desracializar. Já as brancas podem zoar com isso, brincar com essa racialidade o tempo todo sem problemas. Isso é um privilégio da branquitude.

Em junho de 2017 , uma escola de Novo Hamburgo (RS) promoveu a festa “Se nada der certo”, em que estudantes secundaristas “se fantasiaram” de faxineiras, entregadores de pizza, seguranças, atendentes de supermercado e entregadores de pizza. A festa gerou repercussões nas redes sociais e uma das críticas se refere ao racismo na escolha das profissões. Como você avalia isso?

Não dá pra pensar raça no Brasil sem pensar em trabalho – aquilo que no imaginário da população brasileira é nomeado como ”trabalho de branco” e trabalho dos ”não-brancos” (descendentes indígenas e a população negra brasileira). Em um exercício que propus em uma disciplina, coloquei fotos de uma mulher branca e de uma mulher negra com minissaia, um terninho e uma blusinha. E coloquei um homem branco e um homem negro de terno e gravata. Pedi para os estudante pensarem quais eram as profissões destas pessoas. Para a mulher branca, disseram “psicóloga”, “dentista”, “advogada”e “gerente de banco”. Tratam-se de profissões liberais, que geralmente exigem uma formação universitária. Para a mulher negra, disseram “prostituta”, “empregada doméstica” e “secretária”. Para os homens brancos, apareceram as profissões de “médico”, “dentista”, “advogado”, “gerente de banco”, “empresário”, enquanto para o homem negro disseram “jogador de futebol”, “segurança”, “motorista” e “pagodeiro”. As respostas mostram que não era por causa da roupa e que os lugares de trabalho no Brasil são racializados.

 

TIB O que isso mostra sobre o racismo no Brasil?

LVS Em todos os lugares onde a branquitude é hegemônica, aprende-se a ser racista. Mas em alguns, aprende-se e se adere abertamente – como ocorreu no apartheid da África do Sul. No Brasil, é difícil as pessoas aderirem ao racismo tal como se adere a um partido político ou a uma doutrina, movido por ideologia, como foi a Ku Klux Klan nos Estados Unidos ou o partido nazista na Alemanha. Existem grupos assim, como o ”o Sul é o meu país”, no Rio Grande do Sul, mas eles não chegam a 10% dos racistas brasileiros.

Aqui, as pessoas aprendem a ser racistas: elas olham um cargo de poder (como políticos, médicos, engenheiros), veem que eles são ocupados por pessoas brancas e têm um pensamento quase infantil de que isso acontece porque os brancos são melhores. Não se pensa nisso como uma relação de poder.

O fato de brancos estarem nos lugares de poder gera racismo, e o racismo faz com que só brancos estejam nestes espaços. É uma relação dialética. A resposta que as pessoas dão muitas vezes – de que não se trata de ”trabalho para negros”, mas que elas só veem negros nestas posições – não é mentirosa, porque elas veem aquilo no cotidiano. Mas é uma resposta acrítica: elas não veem que isso só acontece por causa do racismo.

É uma resposta que não faz a crítica social – esses lugares subalternos são ocupados por pessoas negras por quê? Falta resposta crítica de colocar o racismo nessa configuração do que as pessoas veem: em sua maioria, esses cargos são ocupados por negros e isso é culpa do racismo.

Você disse que, para o grupo branco, a raça branca aparece como “neutra”. Em 2011, muros de uma escola no bairro do Limão (Zona Norte de São Paulo) foi pichada com dizeres como “vamos cuidar de nossas crianças brancas” após a escola incluir no currículo disciplinas sobre a cultura dos negros. A raça branca não apareceu neste contexto?

Antes das cotas raciais para universidades federais, existia um discurso muito mais forte de que “somos todos misturados”, que trazia aquela ideia da mestiçagem desenvolvida pelo Gilberto Freyre. Depois das cotas, as pessoas começaram a falar sobre os próprios privilégios – de uma forma tosca, com falas do tipo “vou perder minha vaga”. Esse pensamento já traz de antemão a ideia de que a vaga é de uma pessoa branca.

Como uma pessoa negra está “roubando” uma vaga? Universidades públicas são lugares públicos, pagos pela população brasileira composta por 52% de negros. Então essa vaga “estava para” sujeitos brancos a partir de privilégios.

Em um capítulo da minha tese de doutorado, falo sobre o “medo branco”, que ocorre quando os brancos começam a se racializar. A pessoa só fala que vai perder uma vaga na universidade se ela assumir que é branca. Essa invisibilidade da raça branca cai em duas situações: quando há perda de privilégios ou nos momentos de ser racista.  Existe um interesse: a raça branca aparece ou desaparece, dependendo do contexto. Mas, em geral, pessoas brancas não são vistas como pertencendo a uma raça.

O medo branco aparece toda vez que o negro não está subalterno.

TIB Em que outras ocasiões ocorre o “medo branco”?

LVS O “medo branco” é um conceito proposto pela historiadora Celia Maria de Azevedo em sua tese de doutorado “Onda negra, medo branco“. Ela escreveu sobre o período pós-abolição, quando havia muito mais negros do que brancos na sociedade brasileira. Na época, todos os lugares, não só no Brasil, tinham medo de uma “haitização”, dos efeitos da revolução negra do Haiti. Então, se pensou no que fazer para o Brasil ficar branco. É o medo do período pós-abolição.

Eu vejo o “medo branco” como o medo da auto-determinação negra. Em geral, as pessoas nas universidades não querem achar que as cotas raciais foi resultado da auto-determinação de movimentos sociais negros. Elas dizem que a instituição “concedeu” as cotas, como se os brancos tivessem dado isso. Foi uma conquista negra.

Se 52% da população brasileira sofre racismo, é porque tem a outra porcentagem inteira para legitimar essa estrutura de poder.

É como se a branquitude tentasse o tempo todo controlar até onde os negros podem ir e o que podem ser. Isso é próprio da branquitude. Isso é um medo da auto-determinação que tem a ver com a perda de privilégios. Essa perda se dá quando brancos e negros têm uma relação sujeito-sujeito e não sujeito-subalterno. Brancos estão acostumados a estar neste lugar de poder. Em uma das 40 entrevistas para o meu doutorado, uma manicure disse que estranhou muito que a dona do salão onde ela trabalhava fosse negra. Ela diz que estranhou ter recebido ordens de uma pessoa negra e que aquilo “estava invertido”. Quando uma pessoa diz isso, ela pressupõe que há uma posição “normal” – com o branco em lugar de poder e o negro como subalterno. O medo branco aparece toda vez que o negro não está subalterno.

 

 TIB Qual a importância de pensar a branquitude para se falar sobre o racismo?

LVS A ideia de que o racismo é um “problema de negros” é uma forma do branco ganhar benefícios a partir do racismo e se desresponsabilizar deste problema social. Até brancos que reconhecem o racismo muitas vezes falam que esse é um “problema negro”. Mas as construções identitárias de grupos racializados só existem em relação: não existiriam negros se não existissem brancos. Um não existe sem o outro. Qualquer pessoa negra sofreu racismo na escola. Nunca ouvi um negro dizer que não ouviu colegas de escola chamando de “macaco”  ou mesmo aqueles apelidos vistos como  “carinhosos” – “Pelé”, “Mussum”, “choquito”, “brigadeiro”. Negros foram racializados a vida toda e esse processo não é feito por um único branco. Se 52% da população brasileira sofre racismo, é porque tem a outra porcentagem inteira para legitimar essa estrutura de poder. Se brancos virem o racismo como problema deles também, isso implica abrir mão de privilégios.

 

TIB O que seria abrir mãos de privilégios?

LVS É um processo individual e coletivo, da estrutura também. Depois de reconhecer que há privilégios por conta do racismo, quem quer se opor ao problema tem que fazer uma vigilância constante, uma auto-análise o tempo todo. Pensando na relação entre indivíduos, o privilégio pode vir quando uma pessoa branca tem mais espaço para falar em uma situação, por exemplo. Pensando na estrutura, em todas as instituições brasileiras há racismo institucional, já que o racismo é estrutural. O racismo institucional é a incapacidade de uma instituição promover a igualdade racial. Então, se uma pessoa é diretora de uma escola infantil e entrou em contato com essa leitura crítica da branquitude, ela deve pensar qual é a história contada nas aulas, que livros didáticos são usados, onde estão as bonecas negras para as crianças brincarem. Se alguém organiza um evento na área de Matemática, deve pensar se vai ter algum(a) profissional negro(a) ali. Não é para chamar negros só quando o assunto é racismo. Por isso é uma vigilância constante. Muita gente entra em contato com o tema acha que não pode fazer nada. Mas acredito que todos temos algum espaço de poder onde podemos fazer algo contra o racismo.

 

Texto de Alessandra Goes Alves
Disponível em: The Intercept 

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