Nas últimas décadas, o direito internacional dos direitos humanos proporcionou o marco para a criação de uma sólida base de normas que visam à prevenção, à penalização e à erradicação da violência contra as mulheres. A ampla ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que, em sua Recomendação Geral nº 19, interpreta de modo conclusivo que o direito de viver uma vida livre de violência está implícito e constitui um pressuposto básico indispensável para se poder gozar dos direitos ali contemplados, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Penalizar e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará), são apenas alguns exemplos da magnitude e especificidade das obrigações assumidas pela comunidade internacional sobre essa questão.
[…] os avanços no plano legislativo não encontraram reflexo na produção de fontes de informação adequadas para dar conta da dimensão do fenômeno em torno das diferentes manifestações da violência, nem mecanismos de monitoramento e avaliação da efetividade das respostas do Estado.
A região da América Latina e do Caribe é possivelmente a que mais avançou na criação de marcos normativos nacionais para abordar a violência contra as mulheres. Numa primeira etapa, foram aprovadas normas dirigidas à violência nas relações familiares ou violência doméstica. Depois, na última década, uma dezena de países avançou para a aprovação de leis de proteção integral contra diversas formas de violência, voltadas para dar respostas à violência que acontece não somente entre os integrantes da família ou unidade doméstica, mas também nos diferentes ambientes da comunidade. Dessa maneira, países como Argentina, Bolívia, Colômbia, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela sancionaram leis de segunda geração, incorporando a definição de outras formas de violência, tais como a violência institucional, trabalhista, obstétrica, midiática, contra os direitos reprodutivos, assédio sexual, violência patrimonial e simbólica.
No entanto, os avanços no plano legislativo não encontraram reflexo na produção de fontes de informação adequadas para dar conta da dimensão do fenômeno em torno das diferentes manifestações da violência, nem mecanismos de monitoramento e avaliação da efetividade das respostas do Estado. Uma rápida revisão das recomendações dos organismos internacionais, tanto do sistema universal como regional de direitos humanos, feitas a diversos países permite identificar uma exigência importante aos Estados: a de que aperfeiçoem as fontes de informação, como requisito indispensável para projetar políticas públicas apropriadas para abordar as distintas manifestações de violência. Os estudos apontam o déficit de informação existente na região da América Latina e do Caribe, onde os dados lidam apenas com uma das manifestações da violência: aquela que ocorre na unidade doméstica, entre casais atuais ou passados. Isso levou o Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI) à aprovação de um sistema de indicadores de progresso para o monitoramento da convenção que pudesse funcionar como guia e programa de ação na construção progressiva de fontes de informação por parte dos diversos Estados, apropriadas para lançar luz sobre as distintas manifestações e os diferentes ambientes em que ocorre a violência contra as mulheres.
Existem diversas ferramentas metodológicas que permitem obter dados sobre as formas de violência contra as mulheres. Por um lado, as pesquisas, geralmente realizadas para conhecer a violência doméstica infligida por parte de casais atuais ou passados, permitem medir a incidência e prevalência da violência. Elas oferecem informações valiosas sobre a forma como a violência física, psicológica e sexual nos casais afeta a mulheres de diversas idades e níveis socioeducacionais, embora não se registrem diferenças significativas entre os diversos setores, diferentemente do que parece indicar a evidência que surge dos registros de denúncias feitas (que, em geral, se concentram em mulheres em idade reprodutiva e de setores socioeducacionais médios). Com efeito, os registros administrativos permitem documentar o acesso concreto por parte das mulheres em situação de violência aos serviços e recursos disponíveis em determinada jurisdição: as forças de segurança, as linhas telefônicas de assistência, os centros de saúde, os organismos especializados em atenção às mulheres. As instituições vinculadas à administração da justiça, tais como promotorias, defensorias e tribunais judiciais, também produzem informações por meio do registro administrativo de seu fluxo de trabalho. Trata-se de métodos de coleta de informação que devem ser complementares, como único modo de aproximação susceptível de captar a dimensão, as características e as formas que assume a violência.
Os registros de feminicídios, efetuados atualmente por quase vinte países da região, mostram a face mais brutal da violência que alcança as taxas mais elevadas na América Centra.
Apesar da amplitude da definição da violência contra as mulheres que oferece a Convenção de Belém do Pará e que se reflete nas normas internas dos países da região, talvez por sua crueza irremediável, foi a violência extrema contra as mulheres que resultou na mobilização maciça das sociedades latino-americanas nos últimos anos. Os feminicídios perpetrados contra mulheres diversas, adolescentes, jovens e adultas, em contextos urbanos e rurais, dedicadas a diversas ocupações e de distintas condições socioeconômicas, conseguiram chamar a atenção das pessoas com responsabilidade no projeto e execução das políticas públicas. Os registros de feminicídios, efetuados atualmente por quase vinte países da região, mostram a face mais brutal da violência que alcança as taxas mais elevadas na América Central (Honduras, El Salvador, Guatemala e República Dominicana). Frente à dimensão desse fenômeno, as respostas dos Estados tenderam à aprovação de normas penais especificamente dirigidas à penalização da morte violenta das mulheres em situações de violência de gênero, dando lugar a tipos penais específicos ou a distintas modalidades de agravação das penas do homicídio.
Ante a constatação da persistência da violência mais extrema contra as mulheres mesmo com os avanços no marco legal nacional e internacional, nos últimos anos, o olhar começou a dirigir-se para a eficácia dos remédios legais e à implementação das promessas normativas. Começou-se a submeter o trabalho do Poder Judiciário e dos órgãos com responsabilidade na administração da justiça ao escrutínio público, avaliando aquelas iniciativas que propõem garantir o acesso efetivo à justiça pelas mulheres que enfrentam situações de violência e que conseguem ativar diferentes mecanismos para exigir a proteção de seus direitos. Assim, questiona-se a falta de efetividade das respostas estatais, identificando-se as violações cometidas pelos Estados em relação ao dever de devida diligência imposto pelo direito internacional dos direitos humanos.
[…] é preciso compreender as distintas manifestações das violências como um contínuo, o que contribui para explicar a persistência da violência extrema que leva aos feminicídios, fundada na tolerância social e estatal a outras formas de violência mais cotidianas.
A inobservância do dever da devida diligência nos casos de violência contra as mulheres implica uma forma de discriminação por parte dos Estados contra as mulheres e uma negação de seu direito à igual proteção da lei. De acordo com os padrões definidos pelos sistemas regional e universal de direitos humanos, os esforços dos Estados para cumprir com sua obrigação da devida diligência não devem centrar-se unicamente na reforma legal, nem mesmo na adoção de medidas para facilitar o acesso das mulheres à justiça e aos serviços disponíveis para as vítimas. O dever da devida diligência requer sobretudo que se aborde a prevenção da violência, atacando as causas estruturais que estão na sua origem e tomando medidas para modificar os padrões de comportamentos sociais e culturais que também moldam as respostas estatais, inclusive a atuação do Poder Judiciário e das forças de segurança, entre outros atores estatais. Desse modo, assume relevância a obrigação dos Estados de levar em conta a multiplicidade de formas que a violência contra as mulheres adota e os distintos tipos de discriminação interseccional que interferem em seus direitos, a fim de adotar estratégias multifacetadas para preveni-las, abordá-las e erradicá-las com eficácia.
Essa abordagem exige não somente a criação de instituições dotadas de recursos humanos, técnicos e financeiros adequados, organizadas sob a liderança de um mecanismo para o progresso das mulheres com hierarquia funcional apropriada, mas também estratégias eficazes de coordenação interinstitucional e interjurisdicional. Mais ainda, é preciso compreender as distintas manifestações das violências como um contínuo, o que contribui para explicar a persistência da violência extrema que leva aos feminicídios, fundada na tolerância social e estatal a outras formas de violência mais cotidianas.
A estrutura de discriminação das mulheres em que acontecem os feminicídios sustenta-se e alimenta-se de outras formas de violência sutis, naturalizadas e, em sua maioria, ainda alheias às ocupações das políticas públicas: a violência simbólica presente nos meios de comunicação; o assédio sexual em ambientes educacionais e de trabalho; a violência obstétrica naturalizada nas instituições de atenção à saúde; a violência e o assédio sexual que ocorre no transporte e nos espaços públicos. Trata-se de formas de violência que minam o exercício da autonomia das mulheres, restringindo suas liberdades que, mesmo quando se encontram contempladas em muitos corpos normativos nacionais e, sem dúvida, estão compreendidas na ampla definição do Artigo 2 da Convenção de Belém do Pará, não receberam ainda a atenção adequada das políticas públicas.
A partir de diversos espaços públicos e da sociedade civil, começou-se a dar visibilidade a essas outras formas de violência e a percorrer o caminho que as une às violências mais extremas e que exigem respostas da sociedade mobilizada. Os observatórios de mídia e as redes de jornalistas comprometidos com a igualdade de gênero denunciaram a reprodução da violência sexista por parte dos meios de comunicação, que não somente reproduzem as noticias de violências, como constroem um discurso que sustenta a naturalização da submissão feminina. Em conformidade com o mandado do Plano de Ação da Conferencia de Beijing de 1995, a ELA contribuiu para a visibilidade desses fenômenos com a análise das noticias, colaborando também com diretrizes para a incorporação de um enfoque de direitos humanos no trabalho jornalístico. A violência institucional, que se manifesta, entre outros contextos, nos espaços de atenção à saúde, também é geralmente esquecida pelas políticas públicas. São violências que perpetuam outras, com impactos particulares em diferentes mulheres, como, por exemplo, nas mulheres jovens, que são perseguidas e denunciadas mesmo em situações de abortos espontâneos, numa violação de seus direitos humanos.
A violência institucional, que se manifesta, entre outros contextos, nos espaços de atenção à saúde, também é geralmente esquecida pelas políticas públicas. São violências que perpetuam outras […]
Na identificação realizada por diversos organismos internacionais de práticas promissoras de acesso à justiça para as mulheres vítimas de violência, é necessário chamar a atenção para a relevância de considerar suas diversas manifestações e ambientes em que ocorrem, indo além da violência extrema e também da violência presente nas relações de casais. Dessa maneira, será possível avançar na criação de estratégias mais amplas que recuperem o mandato de erradicar as condições estruturais que sustentam as violências em todas as suas formas, apelando à possibilidade de recorrer a outras ferramentas oferecidas pelo direito civil, trabalhista ou administrativo, transcendendo a resposta punitiva. Como sustenta Di Corleto, a “Convenção de Belém do Pará insta os Estados a prevenir, investigar e punir a violência de gênero, mas não exige que todo indivíduo suspeito de violência receba uma pena privativa da liberdade depois de um julgamento”, já que a mesma Convenção se refere à possibilidade de aplicar qualquer outro “procedimento legal, justo e eficaz para a mulher”, padrões que devem ser revisados em relação às distintas manifestações da violência que sejam postas em consideração.
Entre as práticas promissoras identificadas na área do direito e dos sistemas de justiça está a de considerar a violência contra a mulher como uma forma de discriminação por motivos de gênero vinculada a outras formas de opressão das mulheres e como uma violação de seus direitos humanos. São violências cotidianas que restringem a liberdade das mulheres e seu acesso aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Essas formas de discriminação prejudicam a autonomia das meninas, adolescentes e mulheres em suas distintas dimensões: violências nos processos reprodutivos que causam impacto na autonomia física; violências midiáticas e simbólicas reproduzidas no discurso público, que limitam sua participação na vida social e política; e, finalmente, violências em ambientes sociais, educacionais e de trabalho, que influenciam no desenvolvimento da autonomia econômica das mulheres.
Vários Estados da região começaram a delinear respostas normativas e de políticas públicas para essas variadas manifestações da discriminação e da violência contra as mulheres. É preciso monitorar a aplicação das reformas jurídicas para avaliar em que medida são eficazes; garantir a não revitimização ao longo dos processos de investigação; e considerar a incidência diferente das medidas relativas às mulheres segundo a raça, a classe, a origem étnica, a religião, a condição de deficiência, a cultura, a condição de indígenas ou migrantes, a condição jurídica, a idade ou a orientação sexual.
Na consideração dos mecanismos que devem estar à disposição das mulheres para garantir a proteção efetiva de seus direitos, a recente Recomendação Geral 33 da CEDAW considera a disponibilidade e acessibilidade de diversos recursos, que deverão promover a abordagem holística de um problema que se define como estrutural, fundado em estereótipos de gênero que afetam não somente o plano institucional e a implementação de normas e programas de ação, mas também o processo de administração de justiça. Assim, a Recomendação estabelece a obrigação dos Estados de assegurar a disponibilidade de recursos adequados, efetivos, proporcionais aos direitos violados e ao dano sofrido; que incluam medidas de reparação e que garantam recursos relativos aos danos civis e às sanções penais, sem que sejam mutuamente excludentes.
[…] a Recomendação estabelece a obrigação dos Estados de assegurar a disponibilidade de recursos adequados, efetivos, proporcionais aos direitos violados e ao dano sofrido; que incluam medidas de reparação e que garantam recursos relativos aos danos civis e às sanções penais, sem que sejam mutuamente excludentes.
Está claro que os recursos a cargo dos Estados frente à violação do direito a uma vida livre de violência não se esgotam com a aprovação de normas penais, nem mesmo normas punitivas. Considerando-se as diferentes manifestações da violência e a variedade de ambientes em que elas acontecem, é preciso que os Estados disponibilizem uma variedade de recursos, incluindo diferentes formas de reparação, medidas de satisfação e medidas que promovam a transformação das práticas discriminatórias disseminadas que dão lugar às violências. A obrigação do Estado é garantir às mulheres procedimentos que não restrinjam o acesso a outros processos judiciais, considerando diversas esferas do direito (civil, trabalhista, administrativo), e assegurar a existência, disponibilidade e acessibilidade de sistemas de apoio de qualidade a fim de evitar novas violações de seus direitos.
Na região da América Latina, avançou-se não somente em marcos normativos, mas também numa dimensão sumamente promissora de sensibilidade social que condena a violência extrema contra as mulheres. Enquadrada numa compreensão holística do dever da devida diligência dos Estados, é necessário abordar com informações melhores e com ferramentas de política pública mais eficazes as outras formas de violência cotidiana que contribuem para sustentar as condições estruturais de discriminação das mulheres nas quais se multiplicam os feminicídios.