Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos

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presidios lotados

Com o agravamento da situação do sistema prisional, principalmente a partir das chacinas ocorridas em presídios no Norte e no Nordeste, a experiência desenvolvida pelo estado do Espírito Santo recebeu destaque como um modelo de eliminação do caos dentro das cadeias. Mas a situação não é bem assim. “Temos um sistema que foi construído, e segue sendo construído, em cima do uso exagerado da força e do controle sobre a população carcerária. Foi para um extremo oposto, o que, para ser honesto, não poderia servir de modelo”, avalia o advogado Humberto Ribeiro Júnior em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.

Partindo da realidade capixaba, ele discute questões importantíssimas para o país. Segundo o pesquisador, não se pode construir um sistema prisional a partir da destruição simbólica do indivíduo. “Temos que diminuir o encarceramento”, afirma.

Ele destaca que há um percentual muito grande no país e no Espírito Santo de pessoas presas por tráfico de droga. “Como conter a criminalidade se estamos criando criminalidade?”

Conforme Ribeiro, não é possível pensar em sistema prisional, em ressocialização e contenção da construção de presídios sem pensar em uma política de drogas. “Hoje, se descriminalizássemos somente a maconha, poderíamos reduzir em 200 mil a população carcerária do país”, projeta. “Já estancaríamos esse processo sem fim de construir mais presídios.”

A população carcerária só aumenta, cada vez faltam mais vagas e isso implica aumento da violação de direitos, denuncia Ribeiro. “Outro ponto que devemos pensar é abandonar a ideia, alimentada pela grande mídia, de que toda a população carcerária é composta por presos perigosos e que cometeram crimes gravíssimos.”

Humberto Ribeiro Júnior é graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória, mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. É professor do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública e do curso de graduação em Direito da Universidade de Vila Velha (UVV) e membro do Comitê Estadual de Prevenção e Erradicação da Tortura do Espírito Santo (CEPET/ES).

Confira e entrevista

IHU On-Line – Nas últimas semanas, o caos no sistema prisional gerou uma situação de extrema violência e descontrole em presídios no Amazonas, em Roraima, no Rio Grande do Norte e no Maranhão. Há pouco mais de uma década, eram as prisões do Espírito Santo que impressionavam pelas rebeliões e mortes violentas, mas o quadro hoje é diferente. O que foi feito para alterar aquela situação?

Humberto Ribeiro Júnior – Eu colocaria a questão de outra maneira. Quando pegamos a história da situação prisional do Espírito Santo, realmente é bastante complicada. Nós tivemos nosso Alcaçuz [Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte] há cerca de dez anos, entre 2006 e 2009. Na verdade, até um pouco antes. Isso começa em 2003, 2004, quando já havia denúncias de problemas decorrentes de um processo de hiperencarceramento.

Em 2003, tínhamos 2,9 mil presos, e hoje temos cerca de 20 mil. Em um intervalo de pouco mais de dez anos, verificamos um aumento bastante expressivo da população carcerária. Isso tudo dentro de um processo que começa com o governador que está hoje [Paulo César Hartung Gomes]. Ele teve dois mandatos [2003 a 2011]. Quando terminou o segundo, entrou um sucessor que ele apoiava [Renato Casagrande, de 2011 a 2015]. Eles racham no meio do caminho. Depois ele volta, concorrendo contra o candidato que ele tinha apoiado antes, e é eleito governador.

Esse processo de quase dez anos é de bastante luta, intervenção dos movimentos, bastante denúncia. Ao recolocar a questão, quero sair da ideia que vem aparecendo no cenário nacional de que houve uma iniciativa autônoma do governo do Estado para melhorar a situação carcerária. Na verdade, o que houve foi uma luta intensa, que começa com o Sindicato dos Agentes do Sistema Penitenciário do Espírito Santo, os movimentos de direitos humanos, em um determinado momento até a Vara de Execuções Penais entra no processo, e depois o mais forte foi o CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que chegou a pedir em 2009 intervenção federal no Estado.

Não podemos construir um sistema prisional todo a partir da destruição simbólica do indivíduo.

O que houve, por parte do Estado, foi uma resposta a todo esse processo de demanda e de luta social bastante intenso, de vigilância constante. Em 2006, tivemos a primeira crise carcerária, uma crise decorrente da superlotação, por isso gostei muito da expressão que a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] usou, dizendo que este problema não é uma crise, mas um projeto.

Tivemos uma primeira crise carcerária no Espírito Santo em 2006, já demonstrando superlotação, falta de estrutura, tudo o que temos visto nos casos recentes. Por exemplo, esta questão do presídio de Alcaçuz, que não tem estrutura nenhuma, que o muro é aberto, enfim, toda essa história nós ouvimos aqui no Espírito Santo há cerca de dez anos. A primeira resposta do Estado foi comprar contêineres. Ou seja, no Espírito Santo chegaram a usar contêineres como forma de carceragem.

Usaram isso até em uma unidade socioeducativa. Rapidamente os contêineres ficaram superlotados, porque já estávamos em um processo de hiperencarceramento e não parava de aumentar o ingresso de aprisionados. Após o início do uso de contêineres, chegamos à crise pior, em 2009, quando até foi pedida intervenção federal. A primeira iniciativa do Estado, que já era criticada naquele momento, foi o uso de contêineres, algo completamente inadequado para a estrutura carcerária.

O Conselho Estadual dos Direitos Humanos levou o problema para a ONU, houve uma discussão internacional, e a partir desse momento o Estado começa uma reestruturação física dos presídios, mas dentro de uma lógica de emergência. Tanto que usaram dispensa de licitação, o que gerou uma série de suspeitas e denúncias pelo modo como os presídios foram construídos, pela forma como os recursos foram utilizados. Então ocorre uma mudança da estrutura física, mas logo acaba o mandato do Paulo Hartung.

Em 2011, começa o mandato do Casagrande, que manteve o mesmo secretário de Justiça, praticamente a mesma estrutura burocrática. Naquele ano, já começamos a ter de maneira bastante intensiva denúncias de tortura por todos os lados do sistema carcerário. Tanto que, no ano seguinte, o Tribunal de Justiça fez um sistema chamado Torturômetro, justamente para receber denúncias de tortura. O curioso é que, das denúncias recebidas, eu selecionei dois anos para uma pesquisa e 80% eram de casos dentro do sistema penitenciário. Isso surpreende, porque esperamos ouvir sobre denúncias de tortura em delegacias. Utilizaram uma força muito grande para criar uma certa contenção do sistema penitenciário.

Em resumo, para chegar onde se está hoje – e temos que discutir se é um exemplo ou não –, houve uma série de demandas e lutas da sociedade civil e dos próprios órgãos do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria etc., mas, por outro lado, temos um sistema que foi construído, e segue sendo construído, em cima do uso exagerado da força e do controle sobre a população carcerária. Foi para um extremo oposto, o que, para ser honesto, não poderia servir de modelo.

IHU On-Line – O Estado tem o controle das casas prisionais?

Humberto Ribeiro Júnior – Tem, não podemos dizer que não tem. O problema é que o Estado fala de humanização, de ressocialização. Se entrar no site da Secretaria da Justiça, parece alguma coisa muito bem construída, e realmente existem pessoas e iniciativas interessantes, mas são extremamente reduzidas, isoladas, porque, no final das contas, para construir esse tipo de sistema, isso é feito em cima da destruição simbólica das pessoas.

Temos que diminuir o encarceramento.

Quando se está dentro do sistema penitenciário aqui do Estado, é uma coisa muito pesada. As pessoas andam sempre com as mãos para trás, de cabeça para baixo, é um controle extremo. Um colega, que é ex-presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Erradicação de Tortura, escreveu um texto no qual diz que não podemos misturar estética com ética. Temos falado muito da estética prisional do Espírito Santo, mas tem que ser discutida também porque é uma estética construída em cima do Supermax, os presídios de segurança máxima dos Estados Unidos. Esse é um tipo de presídio para um tipo de pessoa.

Aqui estamos construindo um sistema prisional inteiro em cima da lógica do Supermax. Quando se pensa em progressão de regime, em crimes mais graves e crimes mais leves, toda essa distinção não existe, ao contrário do que estabelece a lei penal.

Tem que ter uma execução da pena com divisão da gravidade de crime, e nada disso temos. Todo nosso sistema prisional é construído a partir do modelo da Supermax. Há controle, mas que controle é esse e o que é necessário para tê-lo? No final das contas, muito do que a Lei de Execução Penal manda e muito do que o próprio governo do Estado tem colocado e defendido em termos de humanização, nada disso é possível dentro de um sistema tão rígido como esse.

IHU On-Line – Essa linha adotada pelo governo deve ser bem acolhida pela população.

Humberto Ribeiro Júnior – Com certeza. Vemos coisas absurdas, e não apenas por parte do cidadão comum. Há pouco, o ex-secretário Nacional da Juventude falou absurdos quando começaram as chacinas nos presídios de Roraima e Manaus. Esse é um grande problema que deve ser discutido com a própria população. Temos que pensar que as pessoas estão presas por um tempo determinado, que elas voltarão. Precisamos pensar inclusive a forma de reingresso dessas pessoas na sociedade. Não podemos construir um sistema prisional todo a partir da destruição simbólica do indivíduo. Isso poderia inclusive ser classificado como tortura, conforme definições nacionais e internacionais. Esses atos destinados à destruição simbólica do indivíduo são tortura.

IHU On-Line – O que caracteriza uma destruição simbólica do indivíduo?

Humberto Ribeiro Júnior – É um processo de desumanização. Você deixa de ser um indivíduo livre que pode fazer escolhas, que decide a sua própria vida, para ser um indivíduo que será o tempo todo controlado. Só consigo pensar, quando penso no sistema penitenciário do Estado, no filme Laranja mecânica, naquele momento em que pegam o personagem, ele passa pelo procedimento e se torna obediente a tudo, deixando de ser um ser humano. Quando não consegue mais dizer não, fazer escolhas, é mais ou menos isso que o sistema penitenciário do Estado tenta fazer com o indivíduo.

Conheço vários casos, minha esposa é advogada criminal, ouvimos e sabemos de casos de pessoas que saem do sistema prisional e não conseguem olhar nos olhos de outra pessoa. Há uma destruição da individualidade, da personalidade do indivíduo. É um processo muito pesado, um controle tão grande que acaba passando para fora dos muros. Isso quebra o indivíduo – para usar uma expressão dos torturadores – ou o indivíduo vai sair com bastante raiva, bastante repulsa a esse processo, e vai acabar reproduzindo essa violência. Se está dentro de um sistema de violência constante, acaba reproduzindo essa violência.

Em um primeiro momento, até 2009, quando tivemos o ápice dos índices de homicídios no Estado, atingimos o máximo do grau de violência da série histórica, e foi o momento máximo também do encarceramento em massa. Quanto mais se encarcerava, mais violência gerava. E prendia-se mal.

IHU On-Line – O modelo implantado nas cadeias capixabas precisa de ajustes, aprimoramentos?

Humberto Ribeiro Júnior – O primeiro ajusta não é no Espírito Santo, é nacional. Temos que diminuir o encarceramento. Hoje estamos com cerca de 40% de presos provisórios, o que é outro problema grave do Estado, muito grave mesmo, para mim, um dos piores. Temos muitos casos de presos provisórios encarcerados há mais de 90 dias, pessoas presas há mil dias, ou seja, três anos praticamente como preso provisório. E o regime de execução do preso provisório é muito mais grave do que o do preso condenado, em termo de visita, diálogo com o advogado, banho de sol.

Eles não têm acesso a nenhum desses programas do governo de ressocialização, trabalho e educação, pois são provisórios. Primeira coisa que temos que começar a pensar é reduzir a população de presos provisórios e, segundo, repensar a própria política de encarceramento em massa. Sem diminuir a população carcerária, não tem como fazer nada. Isso passa também por outras questões nacionais, inclusive a revisão de lei penais, como a lei de drogas.

O sistema do Espírito Santo deveria ser mais humanizado, pensar mais adequadamente a graduação de pena, deveria ser criado uma estrutura de regime semiaberto mais adequada, o que não temos. Temos poucas unidades de semiaberto. A progressão da pena não é feita de maneira adequada. E mesmo aquilo que o governo defende o tempo todo, de educação ao trabalho, isso atinge um percentual mínimo da população carcerária. Deveria ser muito maior, mas isso implica gastos, e quando começa a ter que gastar mais com a população carcerária, já começa a haver aquela discussão, principalmente em momento de crise, que se gasta muito.

Para ser bastante honesto, este é o grande desenho que desde a década de 1990 apontava nos Estados Unidos e que vemos se reproduzir aqui de outra maneira. No momento em que aperta a questão financeira, o primeiro ponto que será abolido dentro do sistema prisional são os programas de humanização, pois são caros. Demanda profissionais, estrutura física. Há caminhos, mas todos são complicados. Para mim, o único que é mais plausível e efetivo a curto e médio prazo, é uma política de desencarceramento, que passa tanto pelo Poder Executivo, quando pelo Judiciário.

IHU On-Line – A expressão “arquitetura prisional” é usada para conceituar o que foi feito no Espírito Santo. O que ela significa?

Humberto Ribeiro Júnior – Pegando o caso do Espírito Santo, refere-se à tentativa de construir presídio dentro de uma dinâmica arquitetônica mais adequada e melhor do que a arquitetura anterior, o cadeião. Hoje são presídios com pavilhões separados, com controle bastante panóptico. Há salas de controle, portas duplas, controle feito por cima, onde os agentes passam, e os presos ficam embaixo, a ideia de uma arquitetura da Supermax. Mas aqui investiram principalmente em uma arquitetura que para algumas situações poderia ser adequada, mas, para a maior parte, seria inadequada.

São presídios de segurança máxima. Se pensar que são 20 mil presos no Espírito Santo, sendo que 40% são provisórios, e que todos são presos com segurança máxima, parece um paradoxo, algo anacrônico. Temos cerca de 36% de pequenos traficantes que não são presos de segurança máxima. Há uma predominância da estética sobre a ética, conforme referi antes. A predominância de uma noção arquitetônica que realmente é mais bonita, comparando com o que se via anos atrás no Estado, mas só arquitetura não resolve. Temos que pensar o que está sendo feito dentro deste sistema prisional que já conta com superlotação, controle bastante pesado e excessivo da população carcerária etc.

IHU On-Line – Mesmo que haja dados positivos que atestem a melhora no sistema carcerário no Espírito Santo, ainda persistem denúncias de que ocorrem violações de direitos humanos nos presídios. Que irregularidades são essas?

Humberto Ribeiro Júnior – As principais denúncias são ligadas a torturas feitas em vários níveis. Essas denúncias começam na própria lógica da gestão carcerária: uso bastante excessivo de spray e gás de pimenta. Há um caso em que os presos tiveram queimadura de terceiro grau porque foram obrigados a sentar nus no chão quente, depois de receberem spray de pimenta. A união do calor com os cristais gerados pelo spray acabou produzindo as queimaduras. O que é mais impactante e gera espanto é que, quando vamos vendo esses processos, que desde 2010 e 2011 foram se intensificando, é possível perceber uma determinada linha de permanência, que é justamente a ideia de que essas violações acontecem com a finalidade de manter esse controle aparente das prisões.

No momento em que aperta a questão financeira, o primeiro ponto que será abolido dentro do sistema prisional são os programas de humanização, pois são caros.

Todo momento em que há uma reivindicação mais massiva, ou que vai haver uma ameaça de greve de fome, de rebelião ou de demandas quaisquer, vemos uma intensificação desse controle feito com base na violação de direitos. As principais denúncias que recebemos desde 2010 são relacionadas a isso. Em 2015, tivemos um caso de morte dentro do sistema prisional por conta disso. Tem alguns pontos que não podemos deixar de lado. Existem denúncias graves de tortura no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, para onde vão as pessoas com medidas de segurança. Havia dez internos no ano passado que já tinham alvará de soltura e simplesmente o Estado não soltava porque, diziam, não tinha como soltar. Isso foi objeto de ação da Defensoria Pública, situação bem complicada.

E outro problema grave que não podemos deixar de lado é a questão da socioeducação. Até o final do ano passado, a socioeducação ainda era responsabilidade da Secretaria da Justiça. Isso mudou agora, que passou para a Secretaria de Direitos Humanos, mas até seis meses atrás não. E a socioeducação é um dos espaços de maior violação que tem acontecido no Estado.

Há medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra unidades socioeducativas, tivemos ações da Defensoria Pública para interdição da Unai [Unidade de Atendimento Inicial], que é uma das unidades de internação que estava em situação caótica. Houve muito investimento no sistema prisional, mas deixaram de lado a socioeducação. Na transição do governo Hartung para o Casagrande, houve denúncias, e uma operação enorme chegou a culminar com a prisão da diretora de um instituto por desvios de verba da socioeducação, problemas de gestão terríveis. Era muito dinheiro que ia para a socioeducação, mas nunca chegava aos internos, de acordo com as denúncias feitas na época.

Há um espectro de problemas de violação que acontecem no Estado, mas a maior parte está ligada a essa noção de manutenção do controle, que é alcançado por meio de violência. Uma violência que é parte do sistema de gestão, ela está dentro da lógica dos procedimentos de segurança utilizados no sistema prisional do Estado.

IHU On-Line – O senhor afirma que o Estado não tem uma “gradação de execução penal adequada”. O que isso significa?

Humberto Ribeiro Júnior – Todo mundo é tratado com segurança máxima. Todo tratamento é de Supermax. As instituições são construídas dessa maneira, e a gestão é feita dessa maneira. Já que usam o modelo dos Estados Unidos, lá acontece diferenciação de aprisionamento de segurança máxima e de segurança mínima. Há presos por pequenos delitos, que não são de segurança máxima. Aqui, todos são tratados como segurança máxima.

Com isso, coisas do dia a dia, como acesso a banho de sol, visita de família, tudo é limitado. Tanto que tiveram que criar aqui no Estado um projeto chamado Visita do Abraço, que permite que o preso abrace por alguns minutos a sua família e volte para a cela. Os agentes penitenciários não gostam da visita do abraço. Todos os presos daqui, desde o preso provisório, até aquele em execução penal, é tratado com segurança máxima, com exceção daqueles que conseguem ir para o sistema semiaberto, mas isso é para um número muito reduzido de pessoas.

IHU On-Line – Como ressocializar um detento e estancar o ciclo perverso de as cadeias tornarem os criminosos reincidentes?

Humberto Ribeiro Júnior – Esta pergunta é complicada. Na minha perspectiva teórica, essa construção é inclusive um pouco falsa. Parto de um debate iniciado por Foucault que a prisão serve para manter um círculo fechado que fará isso eternamente. Há uma frase dele, no livro Vigiar e punir, que diz que há 200 anos a prisão é dada como seu próprio remédio. Vemos crises e mais crises, problemas e mais problemas, e a gente resolve isso com mais prisão, quando deveríamos resolver com menos prisão.

Se formos pensar o conceito de ressocialização, não tem como ensinar uma pessoa a viver em comunidade e liberdade privando-a da vida comunitária e da liberdade. A prisão é um contrassenso em si mesmo. Fazemos isso por meio de um processo de quebra da individualidade, da própria liberdade, da capacidade de dizer não e de fazer escolhas. Dentro de um sistema altamente controlado como esse, é pouco provável que consigamos pensar em qualquer perspectiva de ressocialização.

Sinceramente, dentro de um sistema de encarceramento em massa, isso é impossível. Não temos nem dinheiro para fazer. Mesmo que houvesse a maior boa intenção do mundo, não há verba suficiente. A lógica colocada hoje dentro da dinâmica prisional impossibilita qualquer esforço mais sério de pensar em ressocialização. São duas formas de atacar esse problema. Tem um problema de fundo, uma discussão sobre o que é ressocialização. Se formos pegar uma questão mais prática, é impossível fazer isso com a quantidade de gente que está presa hoje no país. Estamos indo para o terceiro lugar no mundo, o que não é uma boa colocação.

IHU On-Line – No Brasil, há uma demanda crescente por mais vagas prisionais. Isso não parece um caminho sem fim, se a criminalidade não for contida?

Humberto Ribeiro Júnior – Sim, mas mais ainda: temos que perguntar o que é criminalidade. Durante muito tempo, dizia-se que a maior parte dos presos era por crimes patrimoniais. Havia pouco menos de um terço de pessoas presas por homicídio, o crime mais grave. Outros crimes igualmente graves, como estupro, sempre foram uma representação pequena dentro do sistema penitenciário. A grande maioria dos presos era por furto e roubo, crimes patrimoniais. Hoje, furto e roubo estão sendo superados por tráfico de drogas. E quando se fala de pessoas presas por tráfico de drogas, estamos falando de comércio ilícito de determinada substância. Não se trata do cara que matou por tráfico, pois ele estaria preso por homicídio.

Hoje temos um percentual absurdo no país e no Espírito Santo de pessoas presas por tráfico de droga. Como conter a criminalidade se estamos criando criminalidade? No momento que transformamos o comércio de determinada substância em crime, estamos criando um volume enorme de criminosos. Não dá para pensar em sistema prisional, em ressocialização, de contenção da construção de presídios, desse processo de aprisionamento constante se a gente pensar numa política de drogas. Hoje, se descriminalizássemos somente a maconha, poderíamos reduzir em 200 mil a população carcerária do país. Já estancaríamos esse processo sem fim de construir mais presídios.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Humberto Ribeiro Júnior – Falamos de aumento da população carcerária, de aumento das vagas, o tempo todo estão construindo mais presídios, mas não podemos esquecer que a construção de vagas demanda outros processos. Por exemplo, tem que aumentar o número de agentes penitenciários, aumentar os serviços prisionais, e não há dinheiro para nada disso. Esse é o grande ponto. Não há investimento adequado ao tamanho da população carcerária atual e nunca vai ter. Diante dessa situação, mesmo quando há um aparente controle, como no Espírito Santo, esse controle só é feito por meio da violação de direitos diretos ou indiretos.

Pode ter uma violação direta, como tortura, mas a violação indireta acontece justamente no cotidiano do sistema prisional. Diante da falta de agentes penitenciários, não se permite visita da família, ou essa visita não é feita no tempo que a lei de execução penal demanda. O tempo do banho de sol é diminuído, assim como o momento que eles poderão circular no pátio. Tudo isso em virtude da falta de estrutura e de capacidade de fazer o trabalho de maneira segura. No final das contas, estamos criando um sistema em que as violações permanecem, mesmo as sutis, que não são vistas no cotidiano e que não seriam classificadas como tortura, mas que implicarão diretamente na vida das pessoas dentro e fora dos presídios.

O rompimento do contato com a família, como é feito, sempre em nome da segurança, vai gerar efeitos bastante graves nesse processo de ressocialização. Não podemos esquecer que esses eventos acontecem o tempo todo, então só temos este aparente controle da população carcerária diante dessa situação de ausência de estrutura adequada, por meio da violação cotidiana dos direitos dos presos. E direitos básicos. Não estamos falando de regalias, estamos falando de banho de sol. No final das contas, temos situações aqui no Estado em que presos têm sido tratados de uma forma de execução mais grave do que o regime disciplinar diferenciado, dos presídios federais destinados aos presos mais perigosos do país.

O aumento da população carcerária vai implicar aumento da violação de direitos. Outro ponto que devemos pensar é abandonar a ideia, alimentada pela grande mídia, de que toda a população carcerária é composta por presos perigosos e que cometeram crimes gravíssimos. Estamos falando, na verdade, de uma grande maioria que está presa por pequenos delitos, coisas irrisórias que se fosse cometida pelo vizinho, jamais pensaríamos que ele merecesse ser preso por conta de uma coisa desse tipo.

Estamos falando de uma grande massa da população carcerária que está presa em regime extremamente grave, sem acesso a família, a uma execução da pena adequada, por motivos irrisórios. Fora a grande massa de presos sem condenação, que inclusive podem ser inocentados depois. São suspeitos, não se pode nem dizer que são criminosos. Vários aguardam julgamento por meses, às vezes até anos, e quando chegam ao julgamento, o crime pelo qual estão sendo acusados tem uma pena menor do que o tempo que ficaram presos provisoriamente. Isso é um problema, porque há uma grande demanda social para que o acusado seja preso imediatamente sem processo, mais isso gera o caos carcerário que estamos vivendo.

*Esse texto foi, originalmente, publicado aqui.

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