Reportagem de Rosângela Borges, publicada em GZH Passo Fundo, em 22/04/2023, disponível clicando aqui.
A cidade de Passo Fundo tem de 80 a 100 ocupações, segundo estimativas de órgãos e entidades locais, onde vivem cerca de 14 mil pessoas — quase 6,8% do total de habitantes (206.103) estimado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021. Nesses espaços precários, ilegais e sem infraestrutura, pessoas que não têm acesso à moradia regular convivem diariamente.
— Muitas dessas ocupações já estão consolidadas. Passo Fundo não sabe ao certo quantas ocupações existem na cidade, devido à ausência de levantamento e fiscalização da prefeitura municipal e outros órgãos públicos. Isso prejudica a solução do problema, que fica inviabilizado e subdimensionado no planejamento urbano e nos serviços públicos — afirma Leandro Scalabrin, que trabalha como advogado em algumas das ocupações.
O advogado afirma que a maior ocupação é a Beira-Trilhos, que corta toda a cidade. O Projeto Beira-Trilhos, desenvolvido pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), estimou em 2016 que viviam nessa ocupação 1,5 mil famílias, totalizando 7 mil pessoas. Não há outras contagens recentes de população no local.
Em 2010, uma revisão do Plano Diretor citava 6,5 mil pessoas em “aglomerados subnormais”, nome formal dado às ocupações, em aproximadamente 1.611 domicílios. Esses aglomerados estavam nos bairros Integração (393 domicílios), Vera Cruz (172) Petrópolis (250); Cruzeiro (596 ) e Lucas Araújo (200).
Scalabrin estima que esse número seja ainda maior, chegando a 14 mil pessoas.
— O IBGE apenas identifica como aglomerados subnormais, aquelas ocupações com mais de 51 casas. Em Passo Fundo existem dezenas de “pequenas ocupações” nas margens de rios, áreas de preservação, áreas públicas e margens de rodovias e dos trilhos — destaca o advogado.
No bairro José Alexandre Zachia, que não aparece na lista de aglomerados subnormais, mais da metade da população vivendo em áreas ocupadas, segundo ele.
Como vivem os moradores
A ocupação Valinhos 2 foi ocupada pelos primeiros moradores há dez anos. Hoje, cerca de 120 famílias moram na área que, oficialmente, pertence à administração municipal. Parte do local é área de preservação permanente, que não poderia ser utilizada para moradia. Estima-se que vivam no local pelo menos 500 pessoas, a maioria jovens, com pequenas famílias, um ou dois filhos, conforme a coordenadora, Edivânia Rodrigues.
Hoje, o bairro tem serviços como mercado, padaria e confeitaria. Babás ajudam a cuidar dos filhos de moradoras que trabalham fora.
— Ocupamos uma área que não estava cumprindo sua função social. As famílias pobres têm na ocupação sua única alternativa de moradia. Muitos são trabalhadores informais e outros sobrevivem em circunstâncias de vulnerabilidade, sem conforto, sem estrutura, em locais insalubres, improvisados e sem acesso às necessidades básicas — observa .
Edivânia afirma que a maioria dos moradores tem renda igual ou inferior a um salário mínimo, o que inviabiliza pagamento de aluguel.
— Não existe como manter a vida com alimentação, luz, água e gás e pagamento de aluguel. Não temos condições de comprar terrenos da forma tradicional. Então as famílias foram se organizando e cada uma fez sua casa. Compramos postes e colocamos energia elétrica de forma precária, assim como encanamento de água, que é provisório. Tudo aqui é difícil. As crianças sofrem em dia de chuva na lama. É uma questão de saúde pública. Estamos aqui para garantir nosso direito mínimo, que é ter um lugar para morar.
Jussara Antunes vive há seis anos na ocupação Zachia 4 e é uma das coordenadoras do grupo. Ela conta que a própria comunidade se ajuda, organiza festas e busca doações, como alimentos, absorventes e fraldas.
— Nós vamos nos organizando dentro da nossa possibilidade. Precisamos que nosso espaço seja regularizado. Sonhamos em ter luz e água encanada, para não precisar tomar banho frio. Nunca recuamos de pagar nossas despesas. As ocupações surgem muito porque não existe um plano habitacional para as pessoas de baixa renda. Eu mesma fui procurar a chance de ter minha casa própria antes de vir para uma ocupação, mas não tive oportunidade. Não somos desocupados, somos trabalhadores e precisamos ter a dignidade de ter onde morar com uma estrutura mínima — afirma.
Falta de infraestrutura
Wagner Luiz Oliveira de Souza, de 41 anos, e a esposa Claudete Gardino de Souza, 45 anos, foram morar na Valinhos 2 desde o início. Ele residem com os dois filhos e um neto. Wagner faz hemodiálise duas vezes por semana há cinco anos. Devido às más condições da rua, a família fez abaixo-assinado para que o veículo da secretaria de Saúde entrasse na rua para transportá-lo.
— A condição da rua sempre foi péssima, é estrada de chão e o motorista se negava a entrar até porque os outros pacientes reclamavam. Em alguns dias tive ir até a parada de ônibus com meu esposo e ele acabou desmaiando algumas vezes. Precisamos da legalização do terreno para fazermos uma casa melhor, até pelo estado de saúde do meu esposo. O banco não faz financiamento sem escritura — explica Claudete.
A venezuelana Melvis Gazcon chegou em Passo Fundo há pouco mais de três anos com um dos filhos — um ano depois chegou Luiz Gabriel, 32 anos, seu esposo. Desde então, 40 membros da família chegaram a Passo Fundo e se dividiram entre as ocupações Bela Vista e Vista Alegre. Melvis conta que no início pagavam aluguel, mas as condições ficaram cada vez mais difíceis e a família se viu obrigada a buscar a ocupação. Grande parte da família trabalha na linha de produção em empresas da região.
— Precisamos de um lugar para morar, não tem como manter a vida assim. Sempre procuramos nos organizar, mas para isso precisamos de moradia digna.
Comissão de Direitos Humanos atua junto às famílias
A Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo acompanha a situação das ocupações. De acordo com a presidente, Luciane Zanella, um levantamento constatou que existiam na cidade mais de 50 ocupações espontâneas, que são feitas por pequenos grupos ou por famílias. Além delas, outras são definidas como organizadas — coordenadas por movimentos sociais — e estruturais, como o Beira-Trilhos, consolidada há décadas.
— Nas ocupações organizadas, a CDHPF faz o acompanhamento e apoio as coordenações, especialmente para oferecer subsídios nos processos judiciais e na incidência para a regularização dos espaços.
No caso do Beira-Trilhos, a ocupação foi objeto de estudos em 2005 e 2016.
— O segundo estudo de acompanhamento resultou em uma ação civil pública, movida pelo Ministério Público Federal (MPF), a partir dos dados e denúncias feitas pela CDHPF. A comissão continua participando do processo judicial, e contribui com elementos no processo. A comissão comunicou à justiça da necessidade de asfaltar as ruas no local, mas a falta de regularização é questionada.
Como faltam água encanada, esgoto, eletricidade, iluminação pública e são dificultados os acessos a serviços essenciais, como escolas, serviços de saúde e transporte, os problemas de saúde pública se proliferam.
— Apoiamos o movimento organizado das ocupações urbanas, com o objetivo de pressionar as autoridades competentes para a regularização e urbanização dos espaços ocupados e o acesso das famílias ao direito à moradia digna.
A questão jurídica
Em levantamento realizado pelo CDHPF em 2016, foram localizados 38 ações de reintegração de posse ajuizadas pelo município, na Vara da Fazenda Pública, totalizando 184 famílias e uma população de aproximadamente 736 pessoas.
O promotor da 1ª Promotoria de Justiça Especializada de Passo Fundo, Paulo Cirne, afirma que o problema precisa ser equacionado pelo poder público, evitando novas invasões.
— Temos muitas áreas ocupadas em Passo Fundo e o poder público deve evitar que essas áreas continuem crescendo, uma vez que isso torna a situação cada vez mais difícil de ser resolvida. Além da proteção das áreas, precisamos dar dignidade a essas pessoas, uma vez que muitas vivem em área de risco. O Ministério Público tem cobrado do município a adoção de medidas de fiscalização, controle e proteção desses locais, evitando novas invasões, porque já temos um passivo muito grande. É preciso que o poder público busque verbas e apoio do governo federal para projetos habitacionais.
O promotor explicou que existem ações judiciais movidas pelo MPRS ou proprietários dessas áreas e outros casos em investigação, buscando acordo, regularização ou desocupação.
— Há morosidade nos processos porque hoje há um entendimento de que devem ser esgotadas todas as vias de negociação e conciliação entre poder público ou particulares e ocupantes na busca de uma alternativa de regularização ou realocação das famílias.
O que pretende a prefeitura
De acordo com a Prefeitura, está sendo feito um trabalho de atualização do Plano Diretor do município junto com a Secretaria de Planejamento (Seplan). As discussões haviam sido iniciadas, mas foram paralisadas na pandemia.
Segundo o executivo, a construção resultará em ações concretas relacionadas ao tema da habitação, como o georreferenciamento, que possibilitará um diagnóstico mais preciso dessas áreas. Na última semana, o prefeito Pedro Almeida e o deputado federal Luciano Azevedo estiveram no Ministério da Habitação e receberam a sinalização de abertura de nova linha de crédito para o programa Minha Casa Minha Vida. O município se comprometeu a buscar uma área e parcerias com a iniciativa privada para construção de um Plano Habitacional para Passo Fundo.
Na última quarta-feira (19), aproximadamente 80 moradores das ocupações protestaram em frente à prefeitura municipal pedindo desapropriação das ocupações ameaçadas de despejo, regularização fundiária, instalação de redes de água, energia elétrica e obras emergenciais nas ruas. O grupo foi recebido pelo secretário de Habitação, Paulo César Caletti. Na próxima semana o secretário e o prefeito Pedro Almeida devem receber representantes dos moradores das ocupações para tratar do tema. O grupo pretende entregar um documento com reivindicações para o poder público.