“Todos somos responsáveis pelos direitos humanos”

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Na segunda-feira, 10, a Declaração dos Direitos Humanos estará completando 70 anos. Tema, no entanto, ainda é pouco conhecido por muitas pessoas e, por isso, mal interpretado e alvo de muitas inverdades.

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa, nesta segunda-feira, dia 10, o seu 70º aniversário. Mesmo que muitas pessoas já tenham nascido em um mundo pós-declaração, o texto ainda é pouco compreendido. O que era pra ser algo natural, afinal, nós, humanos, somos os seres dominantes no planeta, é ainda um tema controverso e que gera muitas inverdades. Para marcar a data, duas entrevistas buscarão desmistificar o tema e explicar porque a luta pelos direitos humanos deve ser de todos e, principalmente, para todos. Neste final de semana, você confere a entrevista do membro com Paulo César Carbonari, doutor em filosofia, professor de Filosofia no Instituto Berthier (IFIBE), associado e coordenador da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS). A segunda entrevista você confere na edição de segunda-feira.

 

O Nacional – O que são direitos humanos?

Pauo Carbonari – Os direitos humanos são a afirmação de que a humanidade é um bem comum a todos/as. A humanidade que está em cada ser humano é exatamente a mesma: são iguais. Por isso, direitos humanos são universais, são de todos/as e para todos/as. Mas, os direitos humanos lembram que, ainda que a humanidade que está em cada um/a seja a mesma, o modo como ela se apresenta é singular: humanos/as são únicos/as. Não pensam do mesmo jeito, não torcem para o mesmo time, não gostam das mesmas coisas. Somos diversidade, somos pluralidade, somos diferentes. Por isso, direitos humanos afirmam o reconhecimento e o respeito ao modo de ser de cada um/a, não aceitam discriminação e nem preconceito. Enfim, os direitos humanos são aquilo que as pessoas precisam para viver com dignidade. Afirmam que todos/as têm direito à saúde, à educação, à cultura, à moradia, à alimentação saudável, à liberdade de expressão, à mobilidade, a não sofrer violência, a seguir a religiosidade que quiser, ao trabalho decente, à remuneração justa, ao lazer, à previdência e assistência social, enfim, a tudo o que uma pessoa precisa para o bem-viver. Por isso, direitos humanos exigem acesso e usufruto justo dos bens necessários a viver com dignidade.

 

ON – É possível que se classifique as pessoas entre quem merece e quem não merece os direitos humanos?

PC – O discurso do mérito é perverso pois joga aqueles/as que condições desiguais e estão sem a proteção adequada para enfrentar a precariedade comum a todos/as como se fossem responsáveis por sua própria desgraça. É excludente. O esforço é parte do processo, mas não é suficiente. As condições precisam ser subsidiadas para que sejam mais justas. Não dá para deixar a garantia de direitos como se fosse apenas uma tarefa do esforço individual. Não existe o meu direito, o teu direito, os direitos são sempre nossos direitos. São sempre comuns, não são e nem podem ser privilégio. Há uma afirmação repetida muito: direitos humanos só protegem “bandidos”. Esta é uma distorção grave, é falsa. Os direitos humanos defendem que toda pessoa que tenha cometido crime ou delito previsto em lei seja tratada com justiça, que tenha um julgamento justo, o devido processo legal e a ampla defesa e, que, se condenada, cumpra a pena num ambiente adequado. Longe dos direitos humanos a vingança, o fazer justiça pelas próprias mãos. Por isso, “bandido bom”, não é bandido morto, é ser humano punido com justiça e ressocializado.

 

ON – E sobre a fala popular que defende “direitos humanos para humanos direitos”, o que é um humano direito e qual a implicação de se defender que apenas esta classificação de humanos tenha direitos humanos?

PC – Não existem “humanos direitos”. Isto é de um idealismo falso que se sustenta num dualismo que divide os humanos de modo maniqueísta. Este discurso é próprio de quem acredita que existem humanos mais humanos do que os outros, com mais humanidade do que outros, e sempre se incluem a si mesmos no primeiro grupo. Esta é a base de um modo de ser racista, machista, lgbtfóbico, enfim, supremacista. Defender que somente os “humanos direitos” tenham direitos humanos é assinar embaixo das posturas que na história se revelaram fascistas e nazistas. Ninguém é absolutamente bom, nem absolutamente mau, lembra Ítalo Calvino em “O Visconde Partido ao Meio”. Esta dinâmica só gera hierarquizações, submissões e inferiorizações. Não ajuda em nada à humanização.

 

ON – Com 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humano é, hoje, compreendida? Qual o maior desafio?

PC – A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi o consenso possível no pós-guerra, quando as Nações Unidas (ONU) davam os primeiros passos. Por isso é um documento genérico, principiológico e de orientação. Não tem força vinculativa em termos jurídicos, mas tem uma grande relevância e importância política, ética e pedagógica. Já nasceu polêmico, pois foram necessárias mais de 1200 votações para que se chegasse ao texto final, aprovado pela assembleia da ONU em 10 de dezembro de 1948. Foram necessários quase 20 anos para que se chegasse aos primeiros Pactos Internacionais com força jurídica: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultural (PIDESC), ambos de 1966. A unidade de direitos de 1948 foi quebrada em dois Pactos. Ela somente será retomada em 2003, na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena), quando se reafirma a universalidade, a interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos. Estes valores hoje voltam a ser questionados com as ideias seletivistas e meritocráticas. Por isso, o grande desafio é a defesa dos direitos humanos de e para todos/as e sua realização efetiva no cotidiano da humanidade em todos os cantos do mundo.

 

ON – Hoje, a sociedade vive com constantes violações de direitos humanos, especialmente no que diz respeito às pessoas em situações de vulnerabilidade social. Na sua opinião, qual(ais) é(são) o(s) direito(s) humano(s) mais desrespeitado(s)?

PC – Os direitos humanos são agredidos sempre que a humanidade de uma pessoa for inferiorizada, desvalorizada, desprotegida. Sempre que faltar comida, casa, escola, atendimento à saúde. Sempre que houver violência e agressão. Sempre que não tenha havido o processo justo, a ampla defesa, a prisão justa, sempre que tenha havido tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. Sempre que houver trabalho escravo, desemprego, salário que não garanta vida adequada, pagamento desigual entre homens e mulheres, que não houver previdência adequada. Sempre que mulheres, crianças, adolescentes, jovens, idosos, deficientes, LGBTs, negros/as, indígenas, e todos/as os/as que precisarem de uma proteção específica ficarem expostos a sofrerem as consequências da desigualdade e em condição de maior vulnerabilidade. Enfim, direitos humanos serão violados sempre que seres humanos com dignidade e direitos forem transformados em vítimas de violações. Ora, se todos os direitos humanos constituem uma unidade, o desrespeito, a não realização de qualquer deles, significará, de alguma forma, atingir a todos os direitos humanos.

 

ON – Quais as responsabilidades com direitos humanos? Qual deve ser o papel do estado na garantia dos direitos humanos?

PC – Todos/as somos responsáveis pelos direitos humanos. Ninguém está autorizado/a a violar os direitos das outras pessoas. Todos/as têm o dever de respeitar os direitos humanos dos/as outros/as. Por isso, cada pessoa é responsável pelos direitos humanos. Mas, também as empresas são chamadas a não violar direitos humanos e a cumprir com suas obrigações com seus trabalhadores/as e com sociedade. Os movimentos sociais e populares são agentes de mobilização para organizar os “sem-direitos” para lutar por direitos e para denunciar as violações. Ao Estado, ao poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário), cabe a realização dos direitos humanos de todas as pessoas, é sua responsabilidade constitucional, por isso tem que responder ante os organismos internacionais (OEA e ONU). A ele também cabe reparar as violações, proteger as vítimas de violações, criar condições para que não voltem a ocorrer violações. A ação do Estado deveria ocorrer por meio da efetivação de políticas públicas adequadas e produzidas para todos/as e com a participação de todas/os. Enfim, há uma tarefa comum e que a Declaração Universal dos Direitos Humanos enfatiza, que é a educação em direitos humanos, com ela se poderá avançar na sua promoção efetiva. As pessoas têm direito de conhecer os direitos humanos, de saber como fazer para agir respeitando os direitos humanos, de saber a quem recorrer para denunciar violações. E isso tem que ser aprendido na escola, na universidade, em casa, na rua, em todo o lugar.

 

ON – Qual o papel das organizações de direitos humanos?

PC – A Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (www.cdhpf.org.br) em 2019 celebra 35 anos de atuação em Passo Fundo e região. Como muitas outras pelo mundo afora, têm um papel fundamental para manter viva a luta por direitos humanos, para alertar a sociedade de que os direitos humanos lhe fazem bem. Para ajudar aqueles/as que são “sem-direitos” a lutar pelos direitos. Por isso, fortalecer a ação dos/as defensores/as de direitos humanos é uma necessidade para que todos/as vivam direitos humanos. E cada um/a de nós é chamado/a a ser defensor/a de direitos humanos dentro de sua casa, na vizinhança, na comunidade, na cidade, no mundo. Nosso desafio é fazer dos direitos humanos um modo de vida.

 

Publicada em: 08/12/2018 – 11:00
Fonte: O Nacional

 

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