O racismo na pele

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A vendedora de balas ambulante Elisângela Cristina de Oliveira, de 46 anos, na Avenida Atlântica, orla de Copacabana, Zona Sul do Rio. | Foto: Luiza Sansão

“Quando você vai procurar emprego, determinados lugares não contratam pessoas negras. Lojas de shopping, restaurantes mais selecionados. Se alguém gritar ‘assalto!’ e você estiver parada, a polícia vai passar por todos os branquinhos que estiverem no lugar e vai parar em você, perguntar onde você estava, se você conhece o ladrão ou é o ladrão”. O relato da vendedora de balas Elisângela Cristina de Oliveira, de 36 anos, não traz, infelizmente, nenhuma novidade para pessoas que, como ela, são negras e sentem o racismo na pele todos os dias.

De tanto se deparar com ‘nãos’ em suas procuras por emprego, ela optou, há mais de dez anos, por trabalhar de forma autônoma, vendendo balas em diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro, mas principalmente na Zona Sul, onde acontecem mais eventos. Foi onde a encontrei, neste domingo, trabalhando durante a 22ª Parada do Orgulho LGBTI, na orla de Copacabana.

“Cansei de dar com a cara na porta, de ir a entrevistas de emprego e não arrumar nada. Aí comecei a trabalhar com bala e parei de procurar emprego”, conta ela, que tem ensino médio completo e fala com enorme fluidez. “Sou vendedora, gosto de vendas, procurava sempre emprego nessa área. Mas quando eles querem te dar o emprego, é sempre o pior, tipo só comissão, sem carteira assinada, só freelancer. Freelancer isso aqui já é, não preciso”, diz. Nas lojas que ofereciam carteira assinada, ela ouvia sempre ‘a gente vai te ligar, a gente vai te chamar’. “Mas nunca ligam, nunca chamam e eu estava gastando dinheiro demais para procurar emprego, aí comecei a trabalhar com isso e não parei mais”.

A mulher negra, segundo Elisângela, enfrenta ainda mais dificuldades para conseguir emprego do que homens, que acabam conseguindo ‘bicos’ como pedreiros, ajudantes em obras ou outros serviços braçais pesados nos quais, em geral, mulheres não têm oportunidades. “Para a mulher, é mais complicado, porque podemos fazer faxina, por exemplo, mas não podemos fazer qualquer serviço braçal como o homem. É mais complicado nos colocarmos no mercado”, diz.

O racismo de cada dia

Elisângela depara-se com o racismo de forma brutal em seu cotidiano de trabalho e afirma que é mais fácil vender para estrangeiros do que para brasileiros, que, segundo ela, na maioria das vezes, dão preferência a vendedores brancos, enquanto “estrangeiros são mais amáveis”.

A diferença de tratamento dada a negros e brancos pelos agentes de segurança pública, segundo a vendedora, é notável. “Você está vendendo bala e, quando a Guarda Municipal tem que expulsar, ela primeiro expulsa os negros, primeiro olha os negros, acha que eles estão assaltando. Infelizmente, o preconceito no Brasil ainda é muito forte, muito intenso”, lamenta.

“Às vezes a gente está num lugar, está dançando, está curtindo,e as pessoas já olham assim, ‘negro ficou bêbado, joga ele lá fora, está pertubando’. O racismo está em cada uma dessas coisas”

Ela conta que, há pouco tempo, no Leblon, uma mulher lhe deu uma nota falsa e ela imediatamente devolveu a nota à cliente, explicando-lhe que era falsa. “Ela começou a gritar que eu tinha lesado ela, que eu tinha enganado ela, chamou a polícia e a polícia praticamente me obrigou a dar dinheiro a ela. Era uma pessoa branca, de aparência boa e refinada. O policial, sem nem me ouvir, disse ‘pra tu não perder sua mercadoria e o restante do seu dinheiro todo, dá o dinheiro a ela pra ficar de boa’. Eu dei o dinheiro. Aquela situação foi muito marcante pra mim, voltei muito arrasada pra casa”, recorda.

Moradora da Zona Norte do Rio e com filhos ainda pequenos, Elisângela ainda não teve nenhum deles abordado violentamente por policiais como se fosse “suspeito” de algo, como frequentemente ocorre com jovens negros. Mas, na escola, sua filha Raqueli, de 10 anos, foi vítima de racismo: uma professora chamou-a de “macaca”, segundo a ambulante. “Minha filha ficou dias muito estranha, não queria mais ir à escola. Por fim, ela acabou contando. Fui à escola, conversei, disseram que iam fazer uma reunião, mas ficou aquele jogo de empurra e a escola abafou o caso, não tomou uma providência. Achou que não tinha nada demais, que minha filha interpretou mal, se ofendeu à toa”, conta. No fim das contas, vendo que a filha “estava se sentindo muito afetada pela situação”, a vendedora matriculou-a em outra escola, para que ela não perdesse o ano letivo.

Para ela, faltam políticas públicas efetivas de combate ao racismo no Brasil. “Nos países desenvolvidos, o preconceito é altamente punido. Existem políticas públicas contra o racismo. As atitudes racistas não ficam por isso mesmo. Mas aqui no Brasil, tem que maquiar o racismo, pra que pareça pros outros países que aqui é maravilhoso e está tudo bem”, critica. “O Dia da Consciência Negra tem que ser marcado como um dia de luta. As classes que são marginalizadas deveriam todas se unir. O LGBT, o negro, o pobre, o favelado, precisam se unir numa voz só”, defende a vendedora de balas.

 

Fonte: Outras Palavras
Texto de Luiza Sansão

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