Apresentamos um esboço de uma reflexão maior que estamos construindo em parceria com várias redes e organizações de direitos humanos no Brasil e que se soma a diversas iniciativas de resistência que denunciam a situação dos direitos humanos no Brasil no contexto do golpe e que desenham o esboço de um novo horizonte para a “reexistência” da luta pelos direitos humanos.
Retrocesso é uma palavra que não deveria constar do dicionário dos direitos humanos, da sua gramática, de seu discurso e, manos ainda, de sua prática. Os principais instrumentos internacionais de direitos humanos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e os Pactos Internacionais, especialmente o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966, ratificado pelo Brasil em 1992), são cristalinos neste sentido. E eles são parte do ordenamento jurídico brasileiro, por isso não estão disponíveis a qualquer legislador ou governo de plantão, nem mesmo à soberania popular. Ou seja, a garantia da progressividade e a proibição do retrocesso é parte das garantias constitucionais e internacionais que não poderiam ser suprimidas sem que isso viesse a gerar consequências graves às garantias e à segurança dos sujeitos de direitos.
O princípio que orienta a ação em direitos humanos e dos direitos fundamentais é o da progressividade de sua realização e, junto com ele, da proibição do retrocesso. Mesmo que seja amplamente condenado pelos defensores da dispensa do Estado na efetivação da garantia e da realização dos direitos humanos, constitui-se num dos pilares do Estado Social de Direito que, como nos informam os constitucionalistas, é o tipo de Estado que foi escolhido pelo constituinte brasileiro e que foi consagrado na Constituição Federal (1988). Afirmar esta garantia é essencial em momento de crise no qual tudo parece suscetível à vontade da nova maioria de plantão e que segue no afã de fazer substituir a Constituição por uma tal “ponte para o futuro”, que mais parece uma “pinguela para o passado”.
Os sessenta dias de interinidade do presidente professor de direito constitucional têm mostrado que não há limite constitucional para quem acha que a lei e a Constituição só valem se lhes for conveniente para realizar seus planos de satisfação de interesses do mercado rentista, de manutenção de privilégios em detrimento de direitos e a aceitação tácita de que os agentes econômicos privados é que são os que de fato detém as prerrogativas de cidadania, não os cidadãos e as cidadãs do País.
Aqui talvez esteja o primeiro e maior retrocesso em matéria de direitos humanos: a inversão do sujeito de direitos – não mais as pessoas, cada uma, cada cidadão, cada cidadã; em seu lugar os agentes econômicos, os proprietários, os rentistas – como aliás já demonstrou ser uma das principais formas de ação dos liberais, sejam eles antigos ou novos.
A inversão consiste exatamente em reconhecer como sujeitos de direitos somente aqueles que participam da vida como agentes econômicos no mercado capitalista, os que são proprietários e que têm poder para consumir – todos os demais, para posições liberais deste tipo, mesmo titulares da cidadania formal, não participam efetivamente dela, já que não são sujeitos e sim efeitos colaterais indesejáveis das medidas de facilitação da acumulação e da concentração da riqueza. Para eles, no máximo ações compensatórias marginais e de controle social, nada de políticas para a efetivação de direitos, menos ainda reconhecimento e participação na vida social.
Este processo, de algum modo, já vem de longa data e se aguça e se enfatiza neste momento histórico. Em outro momento já dissemos que realizar a inclusão social pela estratégia do mercado popular de massa poderia significar antes o desenho do que poderia vir a ser um retrocesso do que efetivamente a inclusão sustentável e a promoção da cidadania e dos direitos humanos. Infelizmente, um dos saldos da “inclusão conciliada” é o crescimento da consciência de que os “ganhos da inclusão” são mais fruto do “mérito pessoal” do que conquista resultante da realização de direitos – assim dizem boa parte das massas beneficiárias do Prouni, do Fies, do Minha Casa Minha Vida, do Bolsa Família e de tantos outros programas “inclusivos”!
Objetivamente, o que o governo interino tem feito em termos de ações no campo dos direitos sociais é apresentar propostas de “reforma” da Constituição que efetivamente atingem as garantias de direitos. Elas estariam entre medidas passiveis de serem classificadas como retrocessos na garantia de direitos. É o caso da Proposta de Emenda Constitucional nº 241/2016, que congela os gastos sociais por vinte anos e desvincula os gastos obrigatórios com educação e saúde, por exemplo. O simples fato de limitar os gastos colide com a ideia de que a progressividade está associada a atender às necessidades concretas, conforme forem surgindo e se alargando.
Ora, congelar gastos significa sequer considerar um dado imediato da realidade que é o crescimento vegetativo da população que, num período de vinte anos, seria significativo. Mesmo que pudéssemos partir do princípio de que os atuais gastos seriam suficientes para fazer frente às necessidades da população – o que está longe de ser verdade – ainda assim seria um flagrante ataque ao princípio da progressividade e da proibição do retrocesso. Haveria outros exemplos, a considerar, mas parece que este é suficientemente plástico para ilustrar a questão que estamos apresentando neste pequeno ensaio.
Os retrocessos em termos de garantias civis e processuais são diversos e podem ser ilustrados pela Portaria que restringia o acesso de advogados em presídios federais de segurança máxima – que foi suspensa depois de pressão por seu flagrante ataque às garantias constitucionais. Ela é uma mostra inequívoca dos arroubos autoritários que se abrem em perspectiva de violação dos direitos humanos. A ele se soma a restrição de direitos políticos e de liberdade de expressão nos jogos olímpicos, com a repressão da Força Nacional a manifestantes que pediam “Fora Temer”.
No campo institucional da estrutura executiva para a implementação de políticas de direitos humanos, o governo interino inaugura um retrocesso de vinte anos e faz o órgão executivo retornar a menos do que era no final do governo Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, perde o status ministerial e volta a ser uma secretaria especial dentro do Ministério da Justiça, agora chamado de Ministério da Justiça e da Cidadania – há também uma restrição conceitual, dado que direitos humanos passaria a ser parte da “Justiça” e “Cidadania”, conceitos que são mais restritos do que o de “Direitos Humanos”, por maior que seja o esforço para alargá-los.
O retrocesso institucional também se amplia pelo fato de tão logo ter assumido, o governo interino, através do Ministro da Justiça e da Cidadania, ter tomado providências para “congelar” gastos com custeio, através da Portaria nº 611/2016. Ela atinge a todos os recursos do órgão que antes tinha autonomia ministerial e que agora é Secretaria Especial. Ela excepciona situações sobre as quais quem deverá deliberar é o Ministro da Justiça, em claro flagrante de perda de autonomia do órgão de direitos humanos. Ou seja, por esta Portaria, a Secretária Especial de Direitos Humanos, se quiser excepcionalizar as questões previstas na Portaria, deverá ter autorização do Ministro, consequência direta da perda do status do órgão de direitos humanos.
Esperamos que este esboço motive à vigilância ativa no sentido de permanecermos atentos aos passos que são dados e possa acumular bons subsídios e argumentos para denunciar os retrocessos e as violações dos direitos humanos deles decorrentes. A luta pelos direitos humanos não é nova, mas se renova neste contexto que exige reinventar formas de ação e de afirmação de sujeitos que sustentem novas lutas, novos protagonismos e novos antagonismos. Vigilantes, à luta, sempre. Não passarão! Nenhum passo atrás, nenhum direito a menos!