Alsadair MacIntyre, em “Depois da Virtude” (1984), fazendo uma análise das consequências do projeto moderno, que inclui a compreensão de que existem direitos naturais e que entre eles estão os direitos humanos, conclui taxativamente que: “a verdade é simples: não existem tais direitos e crer neles é como crer em bruxas e unicórnios” (p. 127), ou seja, a universalidade dos direitos humanos equivaleria, sob este ponto de vista, a uma ficção. É uma reedição das teses comunitaristas que se opõem veementemente aos liberais. Minha perspectiva não é nem de uns e nem de outros. Trago esta referência pois esta afirmação tem crescido com ênfase nos últimos tempos, mesmo que não o tenha sido sob a inspiração direta deste autor, mas certamente vem das hostes conservadoras e ultraconservadoras que por vezes nele se alimentam.
É parte dos direitos ter direito a não acreditar em bruxas e unicórnios, ou seja, é parte dos direitos achar que os direitos sejam ficções e inclusive manifestar-se contra eles, contra sua possibilidade, seja por razões naturais, sejam por motivos racionais ou mesmo emocionais, ou por outras razões. Advogar que os direitos compõem o campo da ficção não necessariamente equivale a negar “tout court” os direitos, O que pode é equivaler sim a negar uma certa compreensão de direitos que, a depender das crenças nas quais estão estribados, poderia se converter exatamente no seu contrário: em negação de direitos. Também não acredito em unicórnios, mas acredito nos/as humanos/as e na sua condição de construtores/as de sua própria humanidade – e paradoxalmente também de sua destruição – e, por consequência, das potências que guardam condições para tal, entre as quais estão os direitos.
A modernidade inventou várias ficções, é verdade. Uma delas é o sujeito autônomo, protótipo dos direitos humanos numa certa concepção do que são os direitos humanos. A exigência de autonomia em modelos deontológicos fez dos humanos seres inexistentes fora do mundo dos fins.
Contraditoriamente, o desejo irrealizável de uma humanidade perfeita se fez realização de negações inaceitáveis da humanidade real. Alguns exemplos: mulheres não foram reconhecidas como autônomas por “dependerem de seus pais ou maridos”, por isso impedidas de exercer a participação e foram mantidas trancadas (em casa ou nas fábricas); os trabalhadores e as trabalhadoras, por não serem proprietários, portanto, por não terem outra liberdade que não fosse a de fazer contratos nos quais tivessem que empenhar seu próprio corpo vivo, contratos de trabalho, ainda que precários e amplamente desfavoráveis a eles, tiveram sua autonomia adstrita à venda de sua própria força de trabalho, alienando sua subjetividade no produto de seu trabalho.
É sim, a modernidade prometeu liberdade e autonomia, mas entregou um novo modo de manter a submissão, até porque dela se alimentou largamente, visto que toda a acumulação primitiva que deu lugar à formação da sociedade capitalista foi erigida sobre o trabalho escravo de negras e negros africanos, para quem a autonomia não chegou, nem mesmo depois da abolição da escravidão, visto ter se traduzido em segregação e discriminação mais ou menos intensas. Não nos esqueçamos das crianças e jovens que, por sua dependência econômica da família, sequer foram reconhecidos com qualquer possibilidade de participação até há poucas décadas – e ainda há muitos pais e mães que os tem por sua propriedade, ao modo do pater família romano.
Enfim, os exemplos do fracasso da promessa de autonomia da modernidade são muitos. Mas eles também mostram paradoxalmente que é esta mesma promessa, quando tomada pelos próprios sujeitos como obra de sua organização e de sua luta, que alimenta a superação da opressão e a construção de humanidade, de humanização de si próprios e da humanidade que está nos outros humanos, mesmo aqueles que são refratários a reconhecer neles humanidade.
Para não seguir acreditando em ilusões, há que se acreditar na humanidade, mas não a humanidade abstrata e universalista do todos que exclui as maiorias. Há que se acreditar na humanidade que se encarna em cada ser humano, em sua corporeidade, em sua espiritualidade, em sua historicidade. Esse todos e todas encharcado de imanência se faz realização de humanidade como luta e como processo.
Assim também são os direitos, dos humanos, são construção como luta e como processo, não são dados naturais e nem concessões de autoridades benevolentes, ou mesmo de privilégios econômicos ou de classe. Pelo contrário, direitos humanos são conquistas que resultam da denúncia da violação dos direitos, dos processos de despotenciação dos sujeitos, de sua vitimização; mas também resultam da proposição de soluções de reconhecimento das alteridades e de afirmação de que os bens necessários ao bem viver estão para serem usados mais do que para serem apropriados e concentrados privativamente. Aprender isso é aprender a compreender que os direitos humanos somente são humanos porque são desta humanidade imanente em cada humano que, ao mesmo tempo que os irmana pela igualdade, também os irmana pela diversidade.
Daí porque, acreditar nos direitos humanos é acreditar numa realidade, não numa ficção, mas na realidade que se faz em cada humano: humanização de cada humano. Realidade que desafia a reconhecer direitos em cada um dos seres do mundo, rompendo hierarquias, formando redes. Alimentar esta crença é alimentar um processo de construção de convencimento permanente e aberto no qual não há verdades previamente estabelecidas e definitivas, mas há diálogos abertos e em construção, há lutas por serem feitas, resistências por serem construídas, agendas novas por serem pautadas. A vida é movimento e criatividade, a humanidade, como parte da vida, também se alimenta destas qualidades. E, se quisermos que direitos façam sentido, então não os penduremos em chifres, mas os vivamos como luta de humanização da humanidade.