Acaba de ser sancionada a “reforma” do ensino médio, proposta por medida provisória, pelo governo em exercício. É possível alterar significativamente uma política pública por medida provisória? O que abonaria a utilização desse recurso? Dentre vários motivos, a urgência seria uma justificativa. Então, as mudanças no ensino médio são urgentes? Argumentam alguns que estão sendo discutidas há anos sem sair do lugar, por isso, o Ministério da Educação defendeu esse formato.
Quando falamos que esse recurso não deveria ser utilizado na Educação, pelo necessário caráter participativo da política, dizem alguns: mas o Prouni, no governo petista, foi criado por medida provisória. Fato também indefensável, porém, um erro não justifica o outro. E são políticas muito diferentes. Uma foi implantada para ampliar as vagas no ensino superior, já que as universidades públicas não tinham capacidade de expansão ao ponto de dar conta da demanda. E a “reforma” do ensino médio é basilar, diz respeito à arquitetura do sistema de ensino – portanto, qualquer mudança precisa ser dialogada com todos os grupos envolvidos.
Várias organizações atuantes na defesa do direito à Educação de qualidade, em conjunto com estudantes, vinham há tempos dialogando sobre mudanças no ensino médio. Não havia voz dissonante quanto à necessidade de novas metodologias e conteúdo, novas formas de fazer acontecer essa etapa da formação intermediária entre a infância, adolescência e a juventude. Além de ser a fase de escolhas profissionais, é neste período que acontece em maior número o abandono escolar.
Diferentes metodologias vinham sendo utilizadas para construir consensos sobre as mudanças. Caminhos diversos eram escolhidos. O Inesc – Instituto de Estudos Sócioeconômicos –, por exemplo, em parceria com o Unicef, dialogava há três anos com estudantes de escolas públicas de ensino médio e da segunda fase do ensino fundamental, com duas perguntas: qual o ensino médio que queremos? E para aqueles que ainda ingressariam nesta etapa, quais as expectativas que temos para o ensino médio?
A ideia era somar as impressões encontradas, com outras, de lugares e organizações diferentes, e levar até o ministério da Educação e o Congresso para apresentar o que os usuários da política estão pensando sobre ela, e quais mudanças gostariam de ver. Essa era uma discussão corrente por diversas outras organizações. Já havia alguns consensos e certamente, em pouco tempo, teríamos uma proposta para ser votada.
O texto aprovado avança em alguns aspectos, quando dá maior fluidez a esta etapa de ensino, o que vai ao encontro de uma das questões levantadas pelos estudantes – o conteudismo e o excesso de disciplinas é desestimulante. No entanto, as várias outras questões levantadas, tais como bullying provocado por LGBTfobia, racismo, gravidez na adolescência, ou necessidade de trabalhar precocemente, não foram consideradas no âmbito da reforma. Até porque há um reforço do próprio ministério em investir em Educação não crítica. O que nos deixa a impressão de ser para atender aos apelos da “Escola sem Partido”.
Mas o que se esperar de um governo ilegítimo, que não transita bem pelas regras democráticas, que utiliza como argumento que o país tem pressa por mudanças, dando a impressão aos leigos que está disposto a atender as demandas reprimidas da sociedade. Sim, temos pressa por mudanças, desde que sejam construídas de forma participativa, que os envolvidos sejam ouvidos e possam ser protagonistas das novidades.
Há outros problemas de concepção, dentre eles a proposta de formação técnica para o mercado de trabalho, que precariza a formação, especialmente dos mais pobres, que em geral precisam estudar e trabalhar. Como é oferecida a possibilidade de complementação da formação por cursos ofertados em seus próprios trabalhos – não importa a qualidade – certamente teremos a realidade da classe média e elite e a realidade da população de baixa renda, que terá muita dificuldade de acesso ao ensino superior, especialmente, às universidades públicas. Estamos na contramão do Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), assinado pelo Brasil, que diz que não pode haver retrocesso de direitos.
A proposta ainda mostra outras discrepâncias, tais como a ampliação da Educação integral. No entanto, acabou de ser aprovada a Emenda Constitucional do teto do investimento público, reduzindo drasticamente, nos próximos vinte anos, os recursos orçamentários para a Educação. Então, como irão ampliar o ensino integral? Mais uma vez será uma política para poucos, para jovens que não precisam trabalhar e estudar – ou seja, minoria de nossa população.
O texto diz que o governo federal fará repasse suplementar para escolas que migrarem para o ensino integral. Um aspecto é digno de elogios, pois dá prioridade às regiões com mais baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). No entanto, conclui dizendo que fará o repasse caso haja recursos orçamentários. O que nos parece é que não será factível, dada a drástica redução de recursos. Ou, para atender esta demanda, outra política deixará de ser realizada…
Os exames de ingresso no ensino superior serão realizados com base nos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ou seja, 60% dos conteúdos. Os outros 40% são conteúdos regionais, baseados em realidades locais. O que se infere é que os conhecimentos preexistentes, culturais, serão desconsiderados em exames e avaliações, que continuarão a ser de caráter nacional. O que fortalecerá a hegemonia das regiões mais ricas que impõem padrões culturais.
Não podemos deixar de anotar o fato de o Congresso Nacional, por pressão dos movimentos populares, ter alterado a proposta original, inserindo novamente a obrigatoriedade das disciplinas de filosofia, sociologia, artes e educação física na BNCC, melhorando o texto final.
No entanto, ainda há uma excessiva valorização do caráter pragmático das formações. O que importa são os resultados, não os processos, ou o amadurecimento, ou a formação de uma consciência crítica, ou a possibilidade de formação de atletas ou artistas. Vamos produzir profissionais da infraestrutura. Que garantam a continuidade de uma sociedade classista, fragmentada, racista, patrimonialista, machista, neocolonialista.