Brasil reconhece pessoas apátridas pela primeira vez na História

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Conheça a história de Maha Mamo, a apátrida que luta para ter seu lugar no mundo.

Estima-se que mais de 10 milhões de pessoas em todo o mundo não pertençam oficialmente a lugar algum. Os chamados ‘apátridas’ são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. Isso abala suas identidades e até mesmo o acesso a direitos básicos, já que, sem documentos, é como se essas pessoas não existissem para as autoridades.

As pessoas apátridas vivem frequentemente em situações precárias, à margem da sociedade. No geral, elas não podem ir à escola, não têm acesso a serviços de saúde, não conseguem emprego, não podem votar e nem mesmo casar legalmente.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a apatridia ocorre por razões como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em incluir todos os residentes do país no corpo de cidadãos quando o Estado se torna independente (sucessão de Estados) e conflitos de leis entre Estados.

O relatório ‘Esta é a nossa casa: as minorias apátridas e a busca pela cidadania’ aponta que a discriminação que permeia a vida dessas minorias pelo mundo é algo gritante.  A perseguição faz parte de suas realidades.

No entanto, assim como afirma o Manual de Proteção aos Apátridas, a nacionalidade é um direito inegável. No Brasil, por exemplo, existe a Lei de Migração. Sancionada em maio de 2017, ela define os direitos e deveres de migrantes e visitantes no Brasil.

Um de seus principais pontos é a garantia de direitos básicos, como saúde e educação, a imigrantes. Esta lei também instituiu o visto humanitário, que vai facilitar a acolhida de pessoas que tenham enfrentado desastres ambientais, conflitos armados ou violações de direitos humanos em seus países de origem.

 

Em busca de um lugar no mundo

A história de Maha Mamo se inicia antes mesmo do seu nascimento. Seus pais são sírios. A mãe é muçulmana e o pai é cristão, mas, na Síria, um casamento inter-religioso é ilegal. Por conta disso, os dois fugiram do país e foram para o Líbano oficializar a união, e foi lá que Maha Mamo e seus dois irmãos nasceram.

Entretanto, para receber nacionalidade libanesa não basta ter nascido no Líbano, é necessário ter pais libaneses. Portanto, Maha não é libanesa, e, já que na Síria seus pais tinham um casamento ilegal, também não é síria. No Líbano e na Síria, a religião vai nos documentos do indivíduo. A situação poderia ter tomado outro rumo caso o pai, que era cristão, se convertesse a religião muçulmana, mas ele se negou a isso.

Durante a infância, Maha ainda não sofria os impactos da apatridia. Sua mãe lutou para que os filhos entrassem na escola e foi nesse ambiente que ela começou a entender a sua situação. “Quando era pequena, gostava de correr e jogar basquete. Participava de campeonatos dentro da escola, mas nunca conseguia competir no campeonato de outras escolas, porque não tinha documentos”, conta Maha Mamo.

Durante a sua adolescência, Maha passou mais dificuldades. Por ser apátrida, sentia-se menor que os outros e não sabia qual era o seu lugar no mundo. Dentro de casa, não conversava sobre os seus sentimentos com os pais porque ambos não gostavam de tocar neste assunto. Foram os amigos que lhe deram apoio.

Quando chegou à fase de escolher um curso no ensino superior, escolheu medicina, porque, segundo ela, queria mudar o mundo. “Quando fui para a primeira faculdade para me registrar, o diretor exigiu documentos, mas eu não tinha. Como iria estudar?”. Foi nessa época que começou a ter o coração partido e os sonhos destruídos.

As dificuldades se tornavam cada vez mais frequentes. Até coisas corriqueiras do dia a dia eram quase impossíveis, como ter uma linha telefônica ou entrar em uma boate para se divertir com os amigos.“Já que no Líbano não havia jeito, voltei a ter esperança depois que pensei na possibilidade de me mudar para um outro país”, relata.

Começou a enviar cartas para todas as embaixadas do mundo, mas sempre recebia respostas negativas, porque não possuía passaporte. A jovem não desistiu. Todas as semanas, ela continuava a escrever a sua história. Dez anos da sua vida se passaram nessa luta, quando em 2014, ao lado de seus dois irmãos, conseguiu vir ao Brasil na onda migratória dos refugiados sírios.

“Foi difícil para mim me mudar e recomeçar a vida em outro país. Meus pais, minha vida social e todo o mundo que eu conhecia ficaram para trás. Mas no Brasil tive a chance de recomeçar. Quando recebi o meu visto e passaporte na embaixada brasileira, não consegui acreditar”. Ao receber os documentos, Maha finalmente sentiu que pertencia a algum lugar.

Uma família em Belo Horizonte acolheu os irmãos. Em 6 meses, já tinha se adaptado à rotina no país e já dominava a língua portuguesa. Tudo parecia correr perfeitamente, quando ocorreu uma tragédia: seu irmão foi assassinado em uma tentativa de assalto. Ele foi morto um ano e meio após ter sido acolhido pelo Brasil.

“Três adolescentes abordaram meu irmão na rua e pediram para que ele passasse tudo o que tinha. No calor do momento, ele ficou nervoso e não conseguiu entender o que os assaltantes queriam. Os criminosos por sua vez acharam que ele estava reagindo e atiraram. Meu irmão morreu apátrida: sem dignidade e sem um país”, conta, com a voz embargada.

Apesar da grande perda, no entanto, Maha e sua irmã, Souad, continuaram lutando. Em maio de 2016, as irmãs foram reconhecidas como refugiadas. E em junho de 2018 elas se tornaram as primeiras refugiadas a terem a condição de ‘apátridas’ reconhecida pelo governo brasileiro.

“A apatridia não é uma questão religiosa nem política, mas humanitária. Meu próximo sonho é conseguir a nacionalidade brasileira. Assim que conseguir isso, quero levar a lei de migração como um exemplo para o mundo e ajudar para que outras pessoas também tenham o direito de existir”, conclui.

 

Por: Isabela Alves
Fonte: Observatório do Terceiro Setor

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