A megaoperação da Polícia Federal e da Brigada Militar, realizada no final de novembro do ano passado, para prender indígenas kaingang acusados de participar de esquemas de extorsão no município de Sananduva – a 367 km de Porto Alegre – ganhou mais um capítulo nesta terça-feira (29). A PF de Passo Fundo intimou para depoimento cinco dos dez ativistas de direitos humanos que são investigados por denunciação caluniosa e reportar falso crime, depois de terem pedido investigação da conduta das forças policiais durante a operação que deslocou 150 homens. Os cinco usaram o direito de permanecerem calados.
A origem do processo foi uma notícia de fato apresentada pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e outros ativistas ao Ministério Público Federal. Diferente de denúncia, neste caso, uma suspeita é levada ao conhecimento das autoridades pedindo que seja aberta investigação. Cerca de 20 dias após o pedido, o delegado chefe da Polícia Federal de Passo Fundo, Mauro Vinicius Soares de Moraes, respondeu ao MPF, requisitando investigação em cima dos dez nomes – cinco defensores de direitos humanos que assinaram nominalmente a notícia de fato e outros, que tiveram seus nomes retirados do site da CDHPF, onde apareciam como membros da coordenação.
Além dos cinco ouvidos em Passo Fundo, outras quatro pessoas foram intimadas para prestar depoimento no início de setembro. O inquérito comandado pelo delegado Eduardo Brun não aborda o processo contra os kaingang, que ainda mantém três dos 11 indígenas presos, no Presídio de Lagoa Vermelha. Ele investiga apenas se houve irregularidades por parte da Polícia Federal e Brigada Militar durante a operação no Passo Grande do Rio Forquilha ou se os defensores dos direitos humanos levantaram calúnia. O delegado diz que a investigação corre em uma “bi-dimensão”, já que a confirmação de uma acusação excluiria a outra.
“Preciso saber se houve abuso policial ou se houve uma mentira de alguém que diz que alguém abusou. Preciso ouvir essas pessoas e preciso que elas me digam de onde partiu [a informação], porque como Comissão de Direitos Humanos, eles recebem informações”, afirma Brun. Antes de ouvir os intimados, ele esclareceu que a opção pelo silêncio poderia resultar em mandados de busca e apreensão em suas casas. “Todas essas pessoas que forem chamadas precisam contribuir com a verdade, doa a quem doer”, afirmou depois ao Sul21.
O processo traz perfis de cada um, citando postagens e ações nas redes sociais e puxando registros policiais que vão desde acidentes de trânsito ocorridos em 1996 a ações judiciais que envolvem os mesmos. Sobre os policiais investigados, não há menção de nomes ou número de pessoas da BM ou da PF que estariam no processo. Brun explica que optou por deixar a informação oculta por uma “questão de inteligência”.
O delegado discorda dos termos “investigados”, “testemunhas” ou “denunciados” para definir as dez pessoas citadas no inquérito. “Essa palavra ‘investigado’ é incorreta. Essas pessoas, com a condição de compor uma Comissão de Direitos Humanos, recebem e ouvem fatos, dentro do atuar legítimo de direitos humanos. Alguém falou para elas, alguma coisa, que elas podem ter veiculado, em vias de representação. Nós precisávamos – embora hoje elas optaram por não contribuir – que elas nos levassem a essas pessoas, para poder ouvir as fontes. Alguém viu, ouviu ou interpretou cada um desses fatos. Essas fontes eu preciso saber quem são”.
Pedido de investigação é praxe, segundo CDHPF
Um dos nomes citados no inquérito, Paulo César Carbonari, coordenador geral da Comissão de DH de Passo Fundo, que ocupou o cargo de presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos até o último dia 18, explica que a notícia de fato teve por base reportagens veiculadas pela Rádio Uirapuru, no dia 23 de novembro, e o fato da Comissão ter acompanhado a situação dos indígenas presos.
“Tinha advogados acompanhando o caso, então não tem nenhum estranhamento e nada de desconhecido para se informar. O que tem é o que era de conhecimento público. O que não era de conhecimento público é de conhecimento dos advogados e tem sigilo ético”, diz.
Leandro Scalabrin, outro membro da Comissão que aparece no inquérito, afirma que a notificação às autoridades sobre supostas irregularidades são uma prática comum desde que a CDHPF foi criada, em 1984. “Já fizemos isso em várias situações, de todos os tipos de violações que entendíamos como de direitos humanos. Quando surgiu o serial killer, Adriano da Silva, em Passo Fundo, em 2002, nós também apresentamos o pedido para abertura de procedimento investigatório”.
Os representantes da Comissão, no entanto, dizem nunca terem enfrentado uma situação similar a esta. “Sempre tivemos nas autoridades públicas parceiros para fazer esse tipo de investigação. Ficamos surpresos com essa reação. Claro, tem divergências, às vezes a autoridade não concorda com o que a gente está sugerindo, mas daí a nos arrolar no inquérito, como nessa situação, é a primeira vez”, diz Carbonari.
Na última semana, diversos movimentos e organizações nacionais publicaram nota em solidariedade aos dez defensores citados pelo inquérito, entre eles o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e oConselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Um dos advogados dos defensores, que participou da audiência na Polícia Federal, Jacques Távora Alfonsin avaliou a oitiva como “positiva”. Ele não quis comentar o porquê da opção pelo silêncio, para não aprofundar na linha que será adotada pela defesa. Alfonsin, porém, avaliou o fato do inquérito trazer perfis dos defensores, mas não mencionar policiais. “Isso mostra que nem o delegado responsável está convencido dos fatos sobre os quais eles estão sendo denunciados. Olhando o processo, temos condições de dizer que essa não seria a melhor forma de tomar informações. Tanto que abriu a chance de chamar novamente as pessoas como testemunhas”.
Comando da operação nega abuso de autoridade
Brun não soube dizer quantas pessoas já foram ouvidas e quantas ainda serão intimadas. O delegado afirmou apenas que os comandos da Brigada Militar e da Polícia Federal já prestaram depoimento, embora não tenha precisado quantas pessoas isso envolveria. O delegado Mário Luiz Vieira, que comandou a operação pela Polícia Federal, está entre eles.
Para Vieira, que trabalha com investigações envolvendo questões indígenas na região norte do estado há quatro anos e meio, os grupos em defesa dos direitos humanos estão “extrapolando” em suas denúncias. “Eu diria que eles estão muito mal-informados. Eles não conhecem [a realidade] e vão pelo ‘ouvi dizer’. Extremamente mal-informados”.
O delegado afirmou reiteradas vezes que não houve qualquer tipo de abuso de autoridade durante a operação e esclareceu que ela foi “muito diferente das outras”. “Os índios kaingang demandam um cuidado muito delicado, então, o número de pessoas usado ali foi justamente para não incitar a reação. Porque a reação, principalmente das mulheres kaingang, é em cadeia. Uma reage, dezenas de outras reagem junto. Então, foi feita uma imobilização temporária”, justifica Vieira, complementando que a reação “geralmente, é violenta”. Segundo ele, no dia, houve um princípio de reação que explicaria o porquê de a Polícia Federal ter entrado com força policial de 150 homens no acampamento. “Usamos o uso moderado da força. Teve índio que tentou atacar policial militar e foi rechaçado com bala de borracha”.
Ele diz que com 30 anos de carreira já poderia estar aposentado, mas “de forma voluntária, segue trabalhando” e que denúncias do gênero, quando feitas contra servidores públicos, podem resultar até em perda de cargos. “Eu fui informado pelo delegado [Brun] que, as pessoas quando se pede alguma razão [para a denúncia], vão para o silêncio. Ir para o silêncio é quando se deve alguma coisa. Tudo aquilo que não pode ser falado, não pode ser feito. Se você faz, tem que falar”.
O inquérito ainda não tem uma estimativa de prazo para a conclusão.